25 fevereiro 2005

Durante anos, meu modo de viver não me permitiu a soltura. Senti-me agrilhoado. Olhava em volta, o que via? Um mundo-ilusão, distinto, brutalmente distinto do meu ideal. Eu buscava o infinito, mas ao redor, via o embate de correntes contrárias. Um negro eflúvio doentio que me saturava pulmões, brisas pestilentas a cortar o ar viciado - era isso a sensação de sentir-me de um estranho, um ser eternamente deslocado.
Hoje, após atrozes tentativas de adaptação, não me desfiz desse sentimento. Ele tão real e presente, necessário à inquietação interior e esta para fomentar o inconformismo, a rebeldia perante o torvelinho horrendo ao ver ,dia a dia , a imutabilidade patológica do mundo. Ele conduziu-me, posso dizer, à convicção terrível de um estado de solidão a que a alma dificilmente fugirá. Tenho-o comprovado na facildade com que as pessoas me evitam, mesmo sem me conhecerem de todo. Sou um inquieto, mas isso não é mau, pois Aristóteles nos aduziu: "Nullum ingenium sine mixtura demenciae."
Cito Camilo, um dos maiores poetas portugueses, com o propósito de reforçar o que digo:
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudade desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desregrada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um Sol onde expirasse a madrugada
Porque é só madrugada quando chora.