24 fevereiro 2008

A Menina Morta - Cornélio Penna


“Com esforço, ao fim de várias tentativas(...) o carro pode entrar na balsa. Dentro em pouco a enorme barcaça, ainda maior só com aquele veículo negro deslizava pelas águas sussurrantes, que pareciam rir e conversar em surdina. Talvez as ondas rápidas, amarelas, contassem umas às outras a história muito curta e risonha da menina vestida de cetim brocado, com a pequena coroa de rosas que era prisioneira entre paredes de madeira rude, escondida pela seda branca, sobre ela esticada.”





O trecho acima faz parte do romance A Menina Morta, de Cornélio Penna, um romancista lamentavelmente desconhecido da maioria dos brasileiros e que escreveu uma das maiores obras da ficção intimista de nossas letras. A Menina Morta é um romance profundo, de atmosfera, conforme classificou Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira.
Produzindo nos primeiros anos do século 20, Cornélio Penna, nascido em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 1896, escreveu um dos mais envolventes textos em prosa cujos leitores, segundo Luís Costa Lima, contam-se nos dedos. Um texto que supera a subjetividade e que vai além da tradição da época, pois, quando surgiu, os seus contemporâneos eram tributários da prosa regionalista que então imperava. Vejam-se Graciliano Ramos, Raquel de Queiróz, Jorge Amado, Érico Veríssimo, por exemplo.

19 fevereiro 2008

O Corvo (Edgar Allan Poe) e A Cabeça de Corvo (Alphonsus de Guimaraens)



Os versos de Alphonsus de Guimaraens que formam o poema “A Cabeça de Corvo”, pela atmosfera sombria, noturna, arrastada que a obra infunde, mesmo numa leitura rápida, para um leitor atento e familiarizado com composições que fazem aflorar sensações angustiantes e perturbadoras, facilmente sugerem um paralelo com uma das obras mais admiráveis da literatura ocidental: O Corvo, de Edgar Allan Poe, poeta, contista e ensaísta norte-americano de vida atribulada que não raramente fazia refletir em suas obras.

É esse paralelo, que salta-nos à vista, o objeto deste artigo. O Corvo tornou-se mundialmente conhecido e inscreveu seu autor, citando Oscar Mendes, no panteão dos poetas imortais. Tais foram a arte e o labor que envolveu a composição do poema que, segundo provas, levou Poe a consumir anos de reflexão cujo processo lógico, cuidadoso, apurado, ele não dispensou de comentar em seu também famoso escrito Filosofia da Composição em que explicita, passo a passo, as minúcias do seu trabalho produtivo.

Como um dado curioso, vale dizer que Poe repelia a idéia de inspiração mágica que certos autores, especialmente poetas, assumiam para atestar o meio pelo qual compunham. Diz ele:

Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa.

(POE, Edgar Allan. Obras Completas, 1998)

Das inúmeras traduções em língua portuguesa de O Corvo, preferi a de Gondin da Fonseca, por estar metricamente mais próxima do original inglês, e, como não convém, neste desambicioso trabalho, uma abordagem demasiado aprofundada do poema de Poe, houve por bem apenas transcrever parte dele, suficiente para se perceber seu eco no poema de Alphonsus de Guimaraens.

O CORVO, Edgar Allan Poe

Certa vez, quando à meia-noite eu lia, fraco, extenuado,

um livro antigo e singular, sobre doutrinas do passado,

meio dormindo – cabeceando – ouvi uns sons, trêmulos, tais

como se leve, bem de leve, alguém batesse à minha porta.

“É um visitante”, murmurei, “que bate, leve, à minha porta.

Apenas isso e anda mais.”

Bem me recordo. Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes...

Morria a chama no fogão, pondo no chão sombra errantes.

Eu nos meus livros procurava – ansiando as horas matinais –

um meio (em vão) de amortecer fundas saudades de Lenora

- bela adorada, a quem, no céu os querubins chamam Lenora,

e aqui ninguém chamará mais.

E das cortinas cor de sangue, o arfar soturno e brando e vago

causou-me horror nunca sentido – horror fantástico e pressago.

Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)

a repetir: “É alguém que bate, alguém que bate à minha porta;

algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta;

é isso, é isso e nada mais.”

Fortalecido já por fim, brado perdendo a hesitação:

“Senhor! Senhora! quem sejais, se demorei, peço perdão!

Eu dormitava, fatigado, e tão baixinho me chamais,

bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha porta,

que não é fácil escutar.” Porém só vejo, abrindo a porta,

escuridão e nada mais.

Perquiro a treva longamente, estarrecido, amedrontado,

sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonhado.

Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante nem sinais.

Uma palavra apenas corta a noite plácida – “Lenora.”

Digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me Lenora.

Isso somente - e nada mais.

Para o meu quarto eu volto enfim – sentindo n’alma estranho ardor,

e novamente ouço bater, ouço bater com mais vigor,

“Vêm da janela”, presumi, “estes rumores anormais,

Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.

É o vento, o vento e nada mais!”

Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de fora,

um corvo grande, ave ancestral, dos tempos bíblicos – doutrora!

Sem cortesias, sem parar, batendo as asas triunfais,

ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto,

quedar sombrio e nada mais.

Eu estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno

tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno.

“Sem crista, embora” – ponderei – “embora ancião dos teus iguais

não és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho errante de Plutão!

Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?”

E o corvo disse: “Nunca mais.”

Fiquei surpreso – pois que nunca imaginei fosse possível

ouvir de um corvo tal resposta, embora incerta, incompreensível,

e creio bem, que em tempo algum, em noite alguma entre mortais

viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta,

e declarar (ao alto de um busto, erguido a cima de uma porta)

que se chamava “Nunca mais.”

(...)

A CABEÇA DE CORVO, Alphonsus de Guimaraens

Na mesa, quando em meio à noite lenta,

escrevo antes que o sono me adormeça,

tenho o negro tinteiro que a cabeça

de um corvo representa.

A contemplá-la mudamente fico

e numa dor atroz mais me concentro,

e entreabrindo-lhe o grande e fino bico,

meto-lhe a pena pela goela adentro.

E solitariamente, pouco a pouco,

do bojo tiro a pena rasa sem tinta...

E a minha mão, que treme toda, pinta

versos próprios de um louco.

E o aberto olhar vidrado da funesta

ave que representa o meu tinteiro,

vai-me seguindo a mão correr lesta,

toda a tremer pelo papel inteiro.

Dizem-me todos que atirar eu devo

trevas em fora este agoirento corvo,

pois dele sangra o desespero torvo

destes versos que escrevo.

Poe, ao compor, procedia à consideração de um efeito, tendo em vista sempre a originalidade. Não dispensava-a, pois era-lhe uma constante fonte de interesse evidente. Para tanto, julgava certo e necessário compor mantendo o “vastamente importante elemento artístico – a totalidade ou unidade de efeito”. Para ele, um poema longo, para não perder essa unidade, deveria ser uma sucessão de poemas curtos em relação matemática direta com seu mérito, ou seja, a extensão do poema deve estar na razão direta da sua intensidade.

Esse doseamento se percebe visivelmente em O Corvo, em que há uma gradação de efeito construída de modo a deixar em suspensão o leitor até atingir seu clímax. Na relação do eu-lírico, em A cabeça de Corvo, com a figura do corvo representada pelo tinteiro, com pequenas diferenças, por tratar-se de um poema curto, essa gradação se realiza com o mesmo efeito de suspensão.

Em ambos os poemas, é a atmosfera que domina. Em ambos, uma personagem acha-se sozinha, metida em seus pensamentos, à noite sombria, silenciosa, alta. Acha-se cansada, envolta em mistério, mas concentrada num ato intelectual e até mesmo fantasioso. Uma lê atentamente, a outra escreve, mas as duas sentem-se observadas, tomadas de vagos receios e pressentimentos.

A impressão de pesadelo e delírio que os poetas conseguem meter em suas obras é algo que se difunde ao longo delas. N’O Corvo, a sibilante /s/ se repete como marcação quase que de um resfolgo “mais, umbrais, tais, matinais etc” ao longo do poema, e alcança plenitude no funéreo estribilho “nunca mais”, que mais se assemelha ao um dobre de finados, sugerindo uma ambiência abafada, um ar pesado a imperar naquele espaço. Além de uma seleção lexical que reflete esse ambiente atroz e ameaçador em que se transformaram os locais de “visitação dos corvos” – lúgubre, sepulcrais, fantasmais, pressago, horror, estarrecido, torvo, funesta, louco etc.

Elemento de presença inequívoca na condução das ações dos poemas, o corvo, ave pressaga, majestática, com seu silêncio tiranizante, interrompido somente pelo dorido e ominoso ritornelo “nunca mais”, no de Poe, quer em silêncio, quer crocitando o terrível dobre, determina os atos da estarrecida personagem. De início, a sua aparição, lá fora, como que um viajante noturno a inspirar as mais medonhas conjecturas ao eu-lírico. Depois, já na sala, no diálogo ardente, perplexo e renitente, ansioso para o mistério solver daquele corvo tão espetacularmente torvo, que só lhe dirige o macabro refrão, o fulminado homem, vendo, na hedionda negação da ave, a resposta às suas ânsias pela amada Lenora, chega ao desenlace ao poema, aterrorizado, negando esse mesmo horror.

Semelhantemente, no poema de Alphonsus de Guimaraens, a ave precita, embora servindo de tinteiro, conduz a evolução do ato. Buscando escrever, em meio à noite, acercado de sono, tentando acoroçoar-se no entanto, o eu-poético desses versos se vê assediado por seu corvo, imerso na mesma atmosfera de medonhez que nos deu Poe. Trêmulo, se entrega ao ato criativo e, como que instintivamente, se vê compondo versos próprios de um louco.

A figura da ave inculca-lhe o pavor com seu olhar vidrado e percebe ele que escreve à lôbrega inspiração do aziago corvo, de tal modo que “dele sangra o desespero torvo desses versos que escrevo.”

14 fevereiro 2008

Existir, Viver, Reinventar...



Viver é constantemente reinventar, muitas vezes, "realidades mentirosas"! Está na índole humana assim como a constituição de uma cadeia inorgânica de átomos está nos minerais. Civilização é mais que um termo, mais que uma mera condição de aprimoramento cultural que nos põe acima dos "selvagens", é uma marca de vinculação à vida, ao trabalho vital (não aquele feito pela humilhante necessidade de sustentar a existência material, mas o produtor e performador da vida), e ao que podemos chamar de essência genérica. É esse sentimento de vitalismo nietzscheano que me faz lamentar certos corolários do ascetismo antropológico-cultural de algumas correntes cristãs, tais quais "esta é vida é uma passagem", "o cristão não pertence ao mundo", "teatro é coisa do mundo" etc.

A malversação da palavra mundo e do seu objeto semântico tem redundado em afirmações irresponsáveis que conduzem muitos à alienação e inflam as igrejas de zumbis repetidores de fórmulas de ressentimento que negam a vida. Como cristão, pesa-me sobremodo testemunhar a aberradora realidade desse fato na existência estagnada e estereotipada de muitos que fazem da espada do espírito moto para sua conformação. Entretanto, a reinvenção que referi no princípio é precisamente positiva e abarca o valor semiótico-cultural da relação dialética do homem com os fatos da vida. Procurei em Fernando Pessoa algum pensamento desassossegado para comprovar isso e, entre outros, achei:


"Damos comumente às nossas idéias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes. Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objeto torna-se realmente outro, porque o tornamos outro."

09 fevereiro 2008

Quo Vadis?

Quinta-feira, 31 de janeiro, exatamente às 14,25 horas, o expediente findava na briosa secretaria de saúde de Maceió. Acabara de desligar o computador, enfarado e enervado com o meu trabalho, tendo que tolerar gente arrogante e medíocre que muito se atribui fumos de merecimento, quando, na verdade, merece unicamente um tiro de fuzil AR-15 na cabeça.
Um movimento açodado de funcionários se percebia à porta, minha coordenadora, a quem a princípio sentia-me inclinado a estimar e hoje me causa asco, saía, quando lhe perguntei:

__ Onde está o diário oficial? Necessito saber se prolongarão o feriado!
__ Ah! Não se preocupe, irá até quarta-feira. Próxima quinta voltamos! - respondeu e ainda achou sensato acrescentar - "Bom carnaval!"

Depois que saiu, permaneci algum tempo na sala apreciando uns goles de café e contrariando prescrições médicas quanto à vulnerabilidade do meu estômago. Maldita cafeína, me viciou e até o cheiro de café pelas ruas, quando singro esquinas e praças próximas às parcas cafeterias de Maceió me injeta uma demoníaca ânsia de brindar meu paladar com o precioso sabor desse liquor quintessencial e sentir seus efeitos adrenérgicos no sistema nervoso simpático.
No corredor, depois que libei o última gota e me senti sob a ação dalgum ácido lisérgico, alguém passou rapidamente e me saudou com voz feminina, mal a olhei, mas atentei devidamente ao que me disse - "Onde vai passar o carnaval?"
Todos os anos a mesma pergunta por essa época; todos os anos a mesma vontade de mandar para o inferno quem ma faz. Por que que tenho que passar o carnaval? É ele que tem que passar longe de mim, na verdade! Por que as pessoas não discernem que ser brasileiro não significa partilhar cegamente de todas as tradições da cultura popular desse país? Pois há mais que carnaval e samba, há mais que folia e embriaguez nas ruas!
Eu prefiro a retirada num bosque francês, o mar de brumas sobre as colinas escocesas, o frio dos prados da Suécia, a serra neblinosa de Campos do Jordão com seu inverno eterno lendo Machado de Assis, Graciliano Ramos ou Robert Browning! Utile agradabile unire!!!