14 fevereiro 2005

MEU AMIGO ROBESPIERRE

Robespierre é um verdadeiro cidadão do mundo. Quando o encontrei, pela primeira vez, indaguei-lhe sobre o motivo que levaria um jovem singelo, ainda que simpático e adorável, a empreender um vida de aventuras quase incessantes e, algumas vezes, por demais perigosas e imprudentes. Disse-me, rindo de leve e recém-chegado do Chile, onde deixou amores inconsolados, um negócio de anos, uma vida familiar construída a penas, que nasceu para isso por sentir-se insatisfeito com a vida nas cidades mais familiares - "O rítmo uniforme do dia-a-dia que me entediava findou por empurrar-me para ser um errante em busca de desafios" - completou.
Na verdade, esse momento foi único entre nós, pois não mais voltei a vê-lo. Era uma manhã nimbosa de inverno na casa de um amigo em comum, no bairro do Jaraguá. Fui de visita três dias, fugindo da balbúrdia do carnaval. Lá estava ele, sentado num canapé e haurindo um punhado de rapé na concavidade da mão. Levantou-se e prontamente me foi apresentado por Hans Ramirez, nosso amigo que depois tornou-se um elo importante entre nós.
Falou-me num português intercalado por castelhanismos - dez anos havia passado no Chile - e alegrou-se, rindo-se comodamente, enquanto sorvia a última porção de rapé.
Conversamos à farta sobre sua estada no Chile. Ele me respondia com tal veemência e entusiasmo como se desejasse que eu partilhasse a fundo das memórias de suas experiências. Disse-me que chegou ao Chile por sugestão do seu pai que tinha um curtume e o queria ver administrá-lo - seu pai é chileno, sua mãe é brasileira - para retirar-se tranqüi-lo a viver ao lado da mulher.
A princípio, hesitou e mesmo negou o convite do pai. Um mês depois, todavia, ao ser exortado pelo tio, que contou-lhe sua experiência como administrador hortícola, decidiu-se pelo pai e fixou morada em Guasco. O negócio, ao que parece, vingou, pelo que pôde expandi-lo, contratar mais empregados, mais equipamentos e viver mais confortavelmente. Interferiu, desse modo, consideravelmente, na economia do lugar. A partir daí, iniciou sua vida de argonauta a imitar o pai, deixando um sócio confiável na gestão da empresa, enquanto se retirava a períodos para fruir as emoções de penetrar lugares desconhecidos e remotos. Seu primeiro destino de expedicionário foi a Patagônia. A incipiência, contudo, dessa primeira empreitada rendeu-lhe transtornos que o marcaram para sempre. Mas fascinaram-no as paisagens selvagens daquela região extrema e fria, seus terrenos vulcânicos, seus indeléveis campos de gelo que se estendem como desertos brancos admiráveis e, mais ainda, sua fauna exótica e fantástica que abriga, por exemplo, o cormoram, uma ave que muito o fascinou.
Sofreu percalços, mas isso não o abateu. Meses mais tarde, buscou ajuda de profissionais para receber tutela. Em 1998, ficou impressionado com os belgas Alain Hubert e Dixie Dansercoer, que atravessaram a Antártida a pé em 87 dias. Ele, contudo, não ambicionava um feito tão grandioso, pois seu desejo era tornar-se um cidadão do mundo, e a Patagônia foi apenas um elixir de estímulo aos cometimentos que viessem. Quis tornar-se um viajante denodado, um cosmopolita à cata de adentrar culturas cada vez mais díspares da sua. Garimpar experiências, somar conhecimentos obtidos de vivências reais e intensas para trer que legá-las a alguém desejoso de encorajar-se.
Desde aquele encontro na casa de Hans, no entanto, não mais o vi. Soube, por certo, de suas viagens pelo próprio Hans. Ano passado, por exemplo, Robespierre esteve em Ipswich, na Inglaterra, de visita a uma amiga chilena. Depois, migrou para Bragança, na Beira Alta, em Portugal. Antes de voltar ao Chile, percorreu a fronteira do sul do Brasil, pernoitou em Iguaçu, sabe-se lá como e na companhia de quem, indo em seguida para a Argentina.
Sua evolução, no decurso desses anos, como resultado de ferrenha obstinação, tornou-lhe um homem admirável pela simpatia e pela força de caráter. Recentemente, por carta, Hans que esterve no Chile, relatou-me sua nova empresa: navegação digital. De certa maneira, essa revelação me veio a surpreender, pois sempre foi infenso a meios eletrônicos. Sempre preferiu aquilo que evocasse sua habilidade de artesão, que impusesse certa dificuldade à realização como um exercício que o conduzisse ao triunfo. Esse é meu amigo Robespierre e assim o tenham!

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