30 novembro 2011

Aos Pés








            Refiz um texto saído dos folguedos de imaginação da adolescência, estava na carreira dos 19 talvez, quando me propus revelar o que faz alguns serem podoestetodólotras, termo que cunhei cujo sentido preciso sabereis lendo. Esta versão comecei dando-lhe ares de conto, mas se meteram entre as linhas veias cronistas e um vagar de devaneio e resultou no que aí vai. 






          A tarde se impunha trazendo seu arrebol cambiante. Eram belas aquelas faixas de fogo que se estendiam na indolência do céu que convidava à contemplação. Eu fitava o passar contínuo das pessoas na rua sentado na cafeteria da praça de ...  Uma voz, menos que isso, um murmúrio cantado me chamou. Voltei-me e lá estava entornando conhaque a figura de um homem que pensava jamais ver novamente. "Olhas as belezas que passam?", perguntou-me enquanto acariciava a barba agrisalhada que terminava em ponta.
            Era um amigo que não via há não sei quantos anos e estava ali como um velho alquebrado, enfurnado num jaquetão vinho, de compleição magra e olheiras violáceas. Segundo me indicou posteriormente, corriam seus 40 anos, mas o vê-lo assim permitia-me dar-lhe muito mais. Julguei-o doente, mas disse-me ter sido devastado pela paixão por uma albanesa que cá viera e o submetera aos seus caprichos.
            "Vi como teus olhos caíam aos pés de cada mulher que passava. Olhavas acima deles à distância, mas, de perto, parecia que se te desenhavam telas de Courbet ou Manet tal alumbramento possuíam!" Disse-me adivinhando-me o objeto de contemplação aquela tarde em que o bulício das ruas se baralhava ao rugir dos carros além, na rua do Comércio. "Foste em cheio no alvo! Observavas-me há tanto tempo aí em silêncio?", perguntei-lhe ao que respondeu "Não somente a ti, pois sei de teu enleio com essas partes do corpo feminino. Também me detinha a vê-las, mas atento a tuas reações. O vinho não te deixaria mais embriagado!" Meu pecado inconfesso, se é de certo assim chamá-lo, afigurava-se-me ali despindo-me um pouco de bem sentir-me naquele ambiente.  
         Nesse momento, levantou-se descruzando as pernas e os dedos encarquilhados que descansava sobre o ventre. Pegou do chapéu de feltro que jazia sobre a mesa e, depois de cobrir com ele a cabeça, comprimiu-me o ombro cortesmente dizendo, no mesmo tom de murmúrio inicial, "não cores, pois, como tu, sei que os pés são táteis como as mãos. Não foram somente negrumes de tristeza que rendeu a paixão treslouca da minha vida. Ela foi um vórtice sugadouro. Levou-me saúde e dinheiro, mas foi um demônio de gozo e deixou-me saudades fundas daquela perfeição grega e trigueira, como as de Fídias, que eu me senhoreava entre os lençois. Daquele corpo ressumavam as delícias de Elísios e dos festejos de Baco, naqueles pés desbotei meus lábios. O pecado e a graça coabitavam-no. Escravizado, sentia-me uma propriedade; convulsionado de gozo, sentia-me um rei"
            Já era noite quando cruzou a soleira da porta cambaleante como um velho. Voltando eu para casa, sob o ar frio, fiquei a rever aqueles momentos de memória. Seu tom, seu ar gasto apesar de suas roupas bem compostas me passavam e repassavam insistentemente, até que lembrei-me - os pés são táteis como as mãos - frase que, de todas, resumia o fascínio que eu ali demonstrava, não querendo, com os olhos amortecidos pela calma da tarde. Isso implica mais que aparenta, pois não se trata somente de prolongamentos corporais de sustentação. Talvez extremidades refinadas de tentáculos humanos, as pernas. Só o vê-las aflige de ansiedade por chegar aos pés. Em casa, aos vapores do charuto, entre goles de vinho alentejano peguei da pena para transvazar meu êxtase no papel e tentar entender a eroto-fisiologia dos pés femininos. Ivan Ângelo, em adorável crônica sobre esses camafeus de carne, disse que "alertam para o que é áspero e para o que é suave"!  São sensíveis. Colhem sensações e devem provocá-las também! Não são apenas linhas, curvas, unhas, pelos, vincos e dobras. Há um universo de imagens geradas por odores e sabores realçados por cosméticos, esmaltes, cremes, libido.
            Partes cheias de mimo e agrado, louçãs como as mãos, coleantes como serpentes. Castro Alves cantou-as com a incontinência típica de seus arroubos: "Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / ao doudo afago de meus lábios mornos." William Yeats, em versos melancólicos, pareceu confessar sujeição aos seus encantos: “Sob teus pés ponho os meus sonhos; pisa-os com cuidado, pois são meus sonhos que pisas!” Revela-nos essa entrega também devoção, não só o desejo que acutila a carne, a punção do estro que atiça o poldro como os versos de Neruda, que apresentam pés quase anódinos, quiçá de uma deidade: “Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo teus pés... mas se amo os teus pés é porque nadaram sobre o vento, sobre a terra e sobre a água até me encontrarem”.
            Sendo, pois, tão ternos ao ponto de religiosa devoção nos criar, convém aplicar-lhes a designação de Machado de Assis da menina-moça: “uma rosa entreaberta, um botão entrefechado”. Que infrutescência rebuçada de graça, donaire de profuso encanto, mas, embora lhes sobejem metáforas que os alocam no reino feérico do alumbro, o gesto do amante, na ritual adoração do beijo, descobre a pulsão do Eros.
            Assim, nos ponhamos, por instantes, no lugar de quem lhes sorve o bálsamo e imaginemos, mercê do tórrido relato do visitante vespertino, a fisiologia dessa conjunção de carnes, lábios esfaimados de gozo e pés banqueteantes de luxúria. O amante desliza a boca pelo dorso, cevando cada polegada de pele. Os dedos retesam-se e parecem clamar pelos lábios que se avizinham, ávidos, já senhores de seu objeto. A língua, então, serpeia por entre eles, ora insinuando ataque ora detendo-se; afogueada, roça de leve a prega entre os dedos e torvelinha-se em sugaduras nas pontas para submetê-los à sua total vontade.
            A essa altura, a bacante já se extasia e as sensações se irradiam para áreas mais incendidas. As saliências do corpo se edemificam e o torpor caminha para o ápice. As coxas, no seu ardente embate, como se resguardassem, desesperadas, o plúmbeo e fogacento báculo de explodir, se aproximam e se encarniçam num crispar de insânia e, entregando-se à volúpia que lhes convulsiona as carnes, se espasmam ao infinito.
             O amante, com a boca já entregue à sola, compensando o arroubo anterior com o festejo das cosquilhas, vê então os lábios de sua Vênus, de contraído esgar de gozo, passar à soltura do riso até retornar ele à frenética sucção nos dedos. Agora, não mais individualizada, mas em grupos. Dois em dois, três em três!
            Quiçá esteja nesse poder de comunicar sensações, de causar delíquios aos fieis acólitos de seus encantos, de avassalar amantes, a explicação para aquela conformação de “pathos” do meu amigo, tão amoldado estava ao cativeiro de uma saudade carnal que lhe transparecia nos olhos e no falar de murmúrio


23 novembro 2011

Olhos de Fome


A Baudelaire



"Nos obscuros desvãos das velhas capitais, 
Em que tudo, até o horror, tem ares encantados,
Eu observo, obediente a meus sestros fatais,
Seres de exceção, decrépitos e amados."

[Quadros Parisienses - Baudelaire]




A loja luzia pela vidraça. Parecia um palácio em festa e todas as sensações despertadas pelas luzes, cores, cheiros e sons criavam nas almas presentes o gozo da estreia. 
Era natal e o bulevar em frente recendia a café e licor de avelã baralhando-se ao odor penetrante das hortelãs metidas em cercas que flanqueiam a rua onde vistosas galhadas de olmos farfalham ao vento. 
Tudo ali mudara. Saíram os cortiços e os barracos de lona para dar lugar ao espetáculo do consumo. Que haja lojas e o capitalismo fez compradores por lei, ofício e doença.
As crianças, lá dentro, corriam pelos corredores com o coração em lavareda. Eram todas braços, pernas e ventres bem fornidos dentro de roupas de cores vivazes mas lúcidas. As mães fuzilavam de alegria ante aquela saúde de potro.
Do lado de fora, três pares de olhos. Apenas olhos afundados na angústia que a fome inclemente injetou. Olhos vestidos de trapos. Olhos que calçavam alparcas rotas de tiras de caixote observando as luzes que, umas, como fogos-fátuos, piscavam de lado a lado e, outras, relampejavam em júbilo. 
Olhos mudos e imotos como cadáveres, que só olhavam tentando comer o que as bocas desdentadas e lassas já não podiam. O cheiro das frutas, a cor dos bombons, o sabor da canela e do mel sobre roliças bananas diziam aos olhos, em formas chamativas e de vulto, o que somente os braços, pernas e ventres cevados de bácoro de feira podiam se senhorear ... enquanto aqueles olhos só olhavam pela vidraça da loja numa tarde de natal.









Tela: Luigi Loir - Uma Praça em Paris