01 janeiro 2011

FASES DA ESCRITA PORTUGUESA

Na formação da língua portuguesa, a representação de sons inexistentes em latim, tais como [v, z, ƒ, λ], entre outros, deu-se através da criação, ao longo de uma série de tentativas, de alguns diacríticos gráficos ou dígrafos (NH, NN, Ñ, LH, LL,CH), que, com a transformação das letras latinas ou simplesmente a desconsideração das letras (C=s, C=k; G=g, G=z), causou uma série de mudanças que podem ser divididas em três grandes momentos. São eles: o período arcaico ou fonético, a partir de 1214; o período moderno, etimológico ou pseudo-etimológico, a partir de 1489 e o período atual, a partir de 1904, caracterizado por reformas ortográficas.

O período arcaico da língua portuguesa é o momento em que a escrita começa a se configurar com suas características particulares através de experiências para a construção da escrita e é marcado pela produção do Testamento de Afonso II (primeiro documento datado e escrito em língua portuguesa). É também conhecido como fase fonética, não apenas pela transposição da fala, mas principalmente por encontrar soluções que se estabeleceriam no período moderno. Esse caráter experimental justifica as constantes flutuações na escrita e o uso de dispositivos para representar certos sistemas sonoros. Disso resulta que, por exemplo, um mesmo autor empregue diferentemente o sistema ortográfico medieval.

Mesmo com as adaptações e incorporações de várias letras, havia uma regularidade. Sobre essa uniformidade Netto cita:

"Se não houvesse de pronto uma letra disponível, ora lançava-se mão da origem própria da palavra que se queria escrever, com G, às vezes incorporando o som modificado da pré-palatal, ora de qualquer outro sinal especialmente inventado para esse fim, como o J. (p. 20)."

Com as contribuições do período anterior, a escrita do período moderno tomava as feições próprias da língua portuguesa. OTratado de Confissom (primeiro livro impresso em língua portuguesa) mostrava que a ortografia se assemelhava à fisionomia presente nos livros do século XVI, inclusive no que diz respeito aos problemas gramaticais, como (nh, lh, ch, ss e ç).

O Renascimento e sua retomada dos valores greco-romanos proporcionam uma latinização do português mediante empréstimos lingüísticos desordenados, tal como ocorre com o inglês hoje. Vasconcelos entende que “a introdução de vocábulos romanos eruditos e, sobretudo, helênicos, foi uma das causadoras das anomalias que deturparam a escrita portuguesa”. O resultado é a escrita etimológica ou pseudo-etimológica, uma vez que a inserção de fonemas e morfemas não seguia nenhum critério filológico na reconstituição das palavras, ao contrário, as adaptações ou reconstituições eram feitas por qualquer pessoa que detivesse o domínio da escrita e pudesse estabelecer alguma relação etimológica, mesmo que equivocadamente.

Se no período fonológico caminhávamos para “coerência da escrita”, no período pseudo-etimológico tivemos um retrocesso. Palatalizações, inserção de letras que não expressavam sons, apenas marcavam sua origem, e outros processos mais, são exemplos dessa passagem. Nesse momento, abundaram grupos consonantais como ct, ph, mn, ll, mm, além do uso desenfreado do h mesmo em palavras cuja etimologia não o justificava. Eis alguns casos:

ESCRITA FONOLÓGICA

ESCRITA ETIMOLÓGICA

oje

hoje

ome

homem

aver

haver

sono

Somno

santo

Sancto

farmacia

Pharmacia

avogado

Advogado

Coser /z/

Cozer /dz/

Passo /s/

Paço /ts/


Vale ressaltar que datam desse período as primeiras sistematizações ou normalizações da escrita. A Grammatica da lingoagem portuguesa, escrita em 1536 por Fernão de Oliveira;Grammatica da língua portuguesa, em 1540, por João de Barros;Orthographia da lingoa portuguesa, em 1974, por Pedro de Magalhães são exemplos de esforços para imprimir limites a escrita caótica desse período. Não se deve esquecer, todavia, de mencionar nomes como Fernão Lopes, considerado o pai da prosa portuguesa; Garcia Resende; Zurara, tido como o primeiro representante da literatura apologética e imperial; e tantos outros escritores que certamente serviram de modelo para as tentativas de normalização da escrita.

É com a proposta de uniformização da ortografia portuguesa que, em 1904, Gonçalves Viana escreve o livro Ortografia Nacional, lançando as bases da ortografia ou período atual. Em seguida, temos a publicação de Vocabulário Ortográfico em 1940, organizado por Rabelo Gonçalves. Por fim, a Academia Brasileira de Letras estabelece em 1943 as Instruções para a organização ortográfica da língua portuguesa, baseada no livro de Viana, com ligeiras modificações. Após essas mudanças algumas reformas ocorreram sem provocar grandes modificações na língua.

Como foi visto, a primitiva simplicidade do português, vista numa indumentária meramente fonética que refletia a índole própria da língua, foi substituída pela moda, em vigor no Renascimento que exigia o conhecimento dos clássicos, de recorrer à origem da palavra para grafá-la em conformidade com ela, isso feito, em muitos casos, inteiramente à inspiração apressada e fantasiosa do escritor, conduta que gerava não uma, mas várias ortografias.

Desse estado de confusão em que se achava a língua de Camões, veio tirá-la Gonçalves Viana, com seu louvável, mas infelizmente não tão reconhecido trabalho Ortografia Nacional, que tem servido de base para reformas simplificadoras.

O objetivo da escrita do período fonético era facilitar a leitura, permitindo ao leitor a impressão, tanto quanto possível exata, da língua falada que seguia, nesse momento, seu fonetismo telúrico. Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras, isso provocava grafarem-se os vocábulos em conformidade com as diferenças regionais de pronúncia, a influência, embora um tanto escassa, do latim, a negligência dos copistas, etc. Escrevia-se visando não à apreensão exatamente do texto pela vista, mas pelos ouvidos. Alguns exemplos, dentre tantos outros, da escrita fonética:

  • O i era representado também por y e j: y = hi, mjnas = minhas;
  • Quando semivogal, substituía-o freqüentemente o h: cabha = cabia, dormho = dormio;
  • Ocorrência de vogais dobradas resultantes da queda da consoante medial: seer = sedere, coor = color, maa = mala. Mais tarde, esse recurso é utilizado para indicação da tônica: ataa = ata, taaes = tais, ceeo = céu;
  • O b às vezes alternava com v: aber = haver. Isso se dava, possivelmente, ou por influência latina ou espanhola;
  • Para preservar o som de duas nasais em contato m e n, intercalava-se um p – dampno (dano), solempnemente (solenemente);
  • Uso de letras geminadas por razões etimológicas, arbitrárias ou por uma realidade de pronúncia:

1. Cree – do latim credet por queda de consoante.

2. Lioões – p/ marcar a tonicidade

3. Pallavra – arbitrária

  • Confusão entre qu e c e gu e g: cinquo e cinco; amigua e amiga;
  • Confusão entre i, y e j e entre u e v: muyto/mujto/muito, lyuro/livro;
  • Confusão entre m, n e ~: cimco/cinco/cĩco;
  • Os sons palatais /ļ/ e /ŋ/ representavam-se por li, l, ll e ni, n, nn respectivamente – falia/fala/falla (falha), vinio/vino/vinno (vinho);

A partir do século XVI, como já dito, a influência do latim, tênue e escassa no período fonético, recrudesce, resultando numa infinidade de restaurações e incorporações vocabulares que visavam a estilizar a língua e aproximá-la, tanto quanto possível, da matriz do Lácio. Surgem, nessa época, os primeiros tratados de ortografia, como os de Pero Magalhães Gândavo e Duarte Nunes. Alguns autores, movidos pelo bom siso, se lançaram contra a debandada etimológica, mas tão frenética era a moda latinizante que não apenas vocábulos novos entraram no idioma, mas também formas antigas de lídimo caráter português sofreram o travestimento etimológico. Formas como dino, benino e malino foram metamorfoseadas em digno, benigno e maligno porque assim eram grafadas no latim. Observáveis também, numerosos ch, ph, rh, th e y começam a aparecer intercalados em palavras portuguesas de origem ou de suposta origem grega. E abundaram os grupos ct, gm, gn, mn, mpt em vocábulos de origem latina.

Querendo por fim às complicações da escrita que redundaram durante séculos e para apaziguar o caos que se instalou devido ao desenfreado arbítrio e fantasia dos escritores e ortógrafos, o governo português nomeou, em 1911, uma comissão de filólogos, dentre os quais o ilustre Gonçalves Viana, dando início ao período das reformas ortográficas. A primeira das quais foi implantada oficialmente cinco anos depois, em 1916, sofrendo uma ligeira modificação em 1927. Acabava, assim, a tirania feroz exercida pelo pseudo-ortografismo greco-latinizante sobre o português que recuperava suas formas medievais em alguns casos.

Seguiram-se a essas outras tantas, tanto em Portugal como no Brasil, sempre objetivando a simplificação, mas marcadas por falhas e lacunas de que derivaram alguns recuos na sua aplicação. Em 2008, após longas discussões e engavetamentos, fixou-se uma reforma ortográfica, acordada entre os países lusófonos, cuja implantação deu-se em 1º de janeiro de 2009, confirmando sua já histórica índole simplificadora, apesar dos protestos de alguns abalizados escritores e estudiosos. Para um ideia do que pensam estes, vejam-se os textos de Roberto Sarmento Lima e Cláudio Moreno: Uma Pedra no Meio do Caminho/A Arrogância do Acordo Ortográfico e Deixem Nossa Ortografia em Paz, respectivamente.