09 dezembro 2009

O TEXTO LITERÁRIO DRAMÁTICO




A obra literária dramática, como uma entidade multifacetada que integra discursos de ordem vária para totalização de propósitos artísticos e reúne, como resultado de elaborações inventivas e até revolucionárias, uma multiplicidade de modos de realização, constitui um testemunho histórico de uma complexidade crescente no desenvolvimento do gênero dramático, desde a ritualística pátrio-religiosa predominante entre os gregos antigos, passando pelas farsas e autos orientados pela tradição católica da Idade Média às interessantíssimas formas modernas como La Cantatrice Chauve, de Eugène Ionesco, ícone do Teatro do Absurdo.

Ao lado dessa colorida heterogeneidade de estilos e modos, sobressai um elemento, o texto dramático que se mantém como componente que tem resistido às tendências metamórficas que perpassam a história do teatro. Fiel depositário dos elementos fundamentais às leituras e diversidade de elaborações cênicas, o texto, na sua produção para o teatro, se concebe, como distinção inicial de sua especificidade, como um continuum cujos constituintes se caracterizam por uma relação de grau.

Assim, temos que o texto é teatral quando funciona como ponto de partida para a concepção do espetáculo. Admite o adjetivo teatral, desse modo, todo texto construído para o teatro que, embora não contenha necessário cunho literário, não o exclui de todo.

O texto é dramático quando, alçada a instância em que evoca o palco como dimensão integradora das metas estéticas, se qualifica para encenação e, nele, se inscrevem as informações lingüísticas e/ou artísticas que lhe permitem tratamento como objeto literário pela análise dos procedimentos técnico-discursivos.

Instaura-se a condição de texto dramatúrgico quando se percebe a textura entre os diversos códigos e sistemas semióticos que concorrem para a realização cênica, num ambiente especifico, determinando a interação com o público.

O processo de consumação do espetáculo teatral permite depreender traços exclusivos que iluminam o texto dramatúrgico como um aparelho multivalente que cumula diferentes e importantes formas discursivas e sistemas artístico-intelectuais. Disso se conclui fatalmente que o teatro é uma instância híbrida da literatura cuja execução se dá num sentido polifásico, ou seja, exige a constituição de um texto como condição de pré-existência da obra dramatúrgica, a consolidação desta na encenação e a integralização de meios de produção artística (formas discursivas como a narratividade) e técnicas artístico-organizacionais como cenografia, coreografia, música, indumentária, estudos fonoaudiológicos etc, perfeitamente integrados num bloco que não se desnatura devido à sua polinomia.

Desta sorte, o texto dramatúrgico, além do que foi considerado, funciona como lugar material de interação que, transposta para o palco, representa um enquadramento que evoca conteúdos semânticos e antropológicos afetos a determinados momentos históricos. Convém ressaltar, portanto, que a artisticidade da obra dramatúrgica, em termos genéricos, serve como moldura de uma reflexão sobre a vida pragmática em todas as suas dimensões, ainda que, em certos casos, seja utilizada como máscara para a difusão de projetos filosóficos, políticos etc.

Considerado na sua relação com o ato encenatório, o texto, já como uma construção literária, se liga a ele através de uma complementaridade que evidencia, em certo sentido, sua condição de vantagem. É bastante para isso ter em apreço alguns aspectos como o modo de lidar com o tempo e espaço que sempre atualizam o texto a cada montagem.

Outro característico importante é a descontinuidade entre texto literário-dramático e a encenação, que não abrange todas as possibilidades encenatórias que o texto sugere. A bem da verdade, é necessário afirmar que ele próprio tem uma natureza falta, lacunar, pois não cobre todos os horizontes na tentativa de abarcar o mundo. É fato que a filosofia contemporânea, diga-se de passagem, duvida da possibilidade de se captar o mundo como uma totalidade representável e a lingüística questiona a anterioridade da idéia à palavra, a hegemonia do significado sobre o dito.

E considerando que a representação cênica constitui um consórcio aglomerante em que o registro lingüístico, que carreia as informações, se associa a outros elementos de ordem vária, é compreensível que, sem desfigurar-se num processo teratogênico, o texto perca sua identidade original, embora, nesse contato dialético, a encenação, por mais liberdade que tenha, sempre se oriente pelas referências textuais.