27 setembro 2005

PODOESTETOLATRIA

Os pés são táteis como as mãos. Essa afirmação tem mais implicações do que aparenta, pois não convém vê-los somente com os olhos físicos. Ivan Ângelo, em uma deleitosa crônica erótica sobre os pezinhos femininos, chamou-me a atenção para isso. Ele disse: “Alertam (os pés) para o que é áspero e para o que é suave...”
Não me dei por pago. Decidi entender a fisiologia dos pés feminis, perscrutar-lhes a anatomia. Imagens sobre imagens, linhas, curvas, vincos, pregas teciduais, lóbulos, unhas, pêlos, pele, sombra, luz, flexibilidade, maciez, calcanhar, encanto...tudo isso sobredourado por adornos cosméticos – esmaltes, cremes, talcos etc.
Uma admirável constituição! Partes tão bem ligadas, tão cheias de mimo, dominadoras no conjunto. Castro Alves cantou os pés de suas musas e Dostoievski, num arrebatamento singular, admitiu: “Sob teus pés ponho os meus sonhos; pisa-os com cuidado, pois são meus sonhos que pisas!”. Um inclinado podólatra? Aliás, tal palavra é mais disseminada no Brasil que em Portugal. No inglês, “footfetish”, literalmente ‘feitiço do pé’. Mas não é esse o termo, que tem um árduo estigma. No caso do escritor Russo e de tantos outros, aplica-se muito corretamente o termo “podoesteta”. Sim, pois para eles os pés (femininos, diga-se de passagem) são objetos de contemplação estética e não apenas um elemento de libido. Pablo Neruda não podia deixar de ser citado: “Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo teus pés... mas se amo os teus pés é porque nadaram sobre o vento, sobre a terra e sobre a água até me encontrarem”.
Lembrei-me da definição de Machado de Assis a cerca da menina-moça: “Uma rosa entreaberta, um botão entrefechado”. Não se referiu, pois, aos pés de alguma de suas personagens marcantes, mas a licença poética que se me dá aqui me permite aplicar essa metáfora machadiana aos esses belos camafeus do corpo feminino.
Na fisiologia do beijo, impõe-se a sua reatividade, pois eles dizem de suas possuidoras mais do que elas imaginam. O amante desliza os lábios pelo dorso, cevando cada polegada de pele. Os dedos retesam-se e parecem clamar pelos lábios que se avizinham ávidos, já senhores de seu objeto. Para submete-los à total mercê, o amante roça de leve a borda da gelha entre os dedos, uma a uma, levando os lábios aos lóbulos, a língua às pontas, tomando-as de súbito. Mas, voltando à sutileza de toque, tomam-se os lóbulos com a boca até o limite da comissura com o corpo dos dedos e engolem-se por inteiro. A essa altura, a mulher já se extasia e as sensações migram para áreas mais afogueadas. As saliências do corpo se edemificam e o torpor caminha para o ápice.
As coxas, no seu ardente embate, como se resguardassem desesperadas o plúmbeo e fogacento báculo de explodir, não querem mais se aproximar um da outra e, entregando-se à volúpia que lhes convulsiona as carnes, se mioespasmam em direção ao infinito. O amante, com a boca já entregue à sola, compensando o arroubo anterior com o festejo das cosquilhas, vê então os lábios de sua Vênus, de contraído esgar de gozo, passar à soltura do riso até retornar ele a frenética sucção nos dedos. Agora não mais individualizada, mas em grupos, dois a dois, três a três!
Eis o beijo amoroso aplicado aos pés, pois estes recebem todas as emanações do corpo da mulher, basta que ela se dispa, levando a eles a calidez da guardiã dos pelos púbicos.

26 setembro 2005

LINGÜÍSTICA, CIÊNCIA POR EXCELÊNCIA

Certa feita conversava com uma jovem galega que não escondia sua preferência pelo português ao galego. Pedi-lhe então que me escrevesse em galego. Ela atendeu-me por uns breves segundos, depois rematou enfaticamente: "Fartei-me de escrever nessa merda!"
Vi, com grande lástima, que ela não pensa como um lingüista. Um dos maiores pecados do homem é não pensar como um lingüista.

23 setembro 2005

MULHERES MALDITAS


À tíbia das lamparinas voluptuosas, sobre sensuais coxins impregnados de essência, sonhava Hipólita as carícias poderosas que lhe erguiam o véu da púbere inocência. Ela buscava, o olhar na tempestade posto, de sua ingenuidade o céu distante agora, como um viajante para trás volve o seu rosto em busca da manhã que já se foi embora.Os olhos já sem viço, o preguiçoso pranto, o ar exausto, o estupor, lúbrica moleza. Os barcos sem ação, como armas vãs a um canto, tudo afinal lhe ungia a tímida beleza. Posta a seus pés, serena e cheia de alegria, Delfina lhe lançava à carne olhos ardentes, como o animal feroz que a vítima vigia, após havê-la antes marcado com seus dentes. Bela e viril de joelhos ante a frágil bela, soberba, ela sorvia com volúpia intensa o vinho da vitória e, acercando-se dela, punha-se à espera de uma doce recompensa. No pasmo olhar da presa ela buscava aflita ouvir o canto que o prazer sem voz entoa, e essa sublime gratidão que arde infinita e, qual suspiro, sob as pálpebras escoa.- "Hipólita, amor meu, que me dizes então?Compreendes quão pueril é oferecer agora em holocausto as tuas rosas em botão a um sopro que as pudesse espedaçar lá fora? Meus beijos são sutis como asas erradias que afagam pela tarde os lagos transparentes, mas os de teu amante hão de escavar estrias como as carroças e os arados inclemente; sobre ti passarão qual sobre alguém pisasse uma junta de bois os cascos sem piedade...Hipólita, meu bem! Volve pois tua face, tu, coração, que és o meu todo e és a metade, volve teus olhos cheios de astros como os céus! Dá-me esse olhar que é como um bálsamo bem-vindo; do prazer mais sombrio eu erguerei os véus e hei de fazer-te adormecer num sonho infindo! "Mas Hipólita então a fronte levantando:- "Não sou ingrata e do que fiz não me arrependo, minha Delfina, eu sofro e à dor vou definhando, como após um festim crepuscular e horrendo. Sinto pesarem em mim graves terrores e negros batalhões de fantasmas dispersos, que querem conduzir-me a fluidos corredores num sangüíneo horizonte em toda parte imersos. Teremos cometido algum pecado extremo? Explica, se é capaz, o medo que me acua: se me dizes: Meu anjo! Eu de alto a baixo tremo e sinto minha boca ir em busca da tua.
Chareles Baudelaire, em Flores do Mal

20 setembro 2005

UNDER SUBURBAN SKY

Morar no subúrbio é um insulto à paciência. Isso me tem apoquentado desde anos remotos, quando eu ainda respirava seus ares com bofes pueris, virgem de tantas coisas que hoje se me amontoam à roda. Pois o interior de meu estado, Alagoas, me enfastia e molesta de tal forma que não consigo manter a tranquilidade por alguns momentos diante da atmosfera aborrecente que me circunda. A vida provinciana aqui não é encantatória como na Europa. É o tédio da monotonia. Como agravante, os hábitos vulgares de alguns moradores, em suas ocupações mesquinhas e vazias, como freqüentar tabernas infectas e ordinárias de esquina, reproduzindo suas cantilenas insulsas, destituídas de qualquer sentido que lhes dê algum caráter musical, acabam por completar o quadro decadente que se descortina à vista, num visita aos seus arrabaldes.
Não quero aqui desmerecer o lugar em que vivo, ele tem seus atrativos e comodidades, mas, infelizmente, estes são sufocados pela confragosidade da canalhada que o habita, desaparecem em meio à bandalha que o desnobilita.É uma lástima.
Confrange-me o espírito um lugar sem opções culturais. Livrarias, bibliotecas, museus, exposições em galerias, efervescência intelectual, rodas literárias, cafés filosóficos - isso é a belle époque dos sonhos. Minha alma é constituída de arte, meus alvéolos pulmonares necessitam captá-la; meus olhos, perlustrá-la.
Logo, tenho que fixar-me na capital, como Luciano de Rubempré.

09 setembro 2005

AMOR - PALAVRA ESSENCIAL

Moralistas, perdoai-me, pois cedi à poética profunda de Drummond. Há muito o julguei um poeta por demais comum, pois o Modernismo sempre me foi insípido. A Drummond, todavia, resolvi fazer essa exceção, pelo modo veraz e crucial como fala sobre esse sentimento atormentante que não se manifesta apenas no âmbito do espírito, mas se espalha nos lençóis da cama e roça em cada poro do corpo.
Amor, guia o meu verso!
Amor - pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro gritode orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,a idéia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.Quantas vezes morremos um no outro,
nu úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um Deus acrescenta o amor terrestre.

05 setembro 2005


Definição que os dicionários brasileiros dão do galego: Língua românica, próxima do Português, falada na Galiza (Espanha).
E ainda há os que insistem em dizer que galego é português!