28 janeiro 2008

Realidade e Transfiguração na Literatura

A leitura de O Discurso e A Cidade, de Antônio Cândido, me pôs em contato com um romance que o velho mestre classificou como transfigurador da realidade. Aliás, essa é uma das divisões de seu livro que reúne romances tributários de uma postura dita realista por descreverem a realidade, como L'Assommoir, de Émile Zola, e O Cortiço, de Aluísio Azevedo, notavelmente inspirado no precedente; e romances que transcendem o julgamos real, no entanto são capazes de comunicar um profundo sentimento de vida, pois são literariamente eficientes.
Nessa última categoria, Cândido inclui quatro obras: O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, escrito em 1945; o conto A Construção da Muralha da China, de Kafka, escrito a maior parte em 1917 e que consta de fragmentos deixados pelo autor a respeito do tema; O Litoral das Sirtes, publicado em 1951 e escrito por Julien Gracq; e o ótimo poema À Espera dos Bábaros, de Constantino Cavafis, que remonta aos primeiros anos do século XX.
Essas quatro composições compõem, segundo o autor, um único ensaio em quatro capítulos, pois versa sobre textos que encerram uma realidade arbitrária, com peias na fantasia transfiguradora e são sustentados por uma liberdade de criação de situações que, entretanto, dificilmente deixa de transmitir dramas reais, encontráveis na realidade historicamente comprovada. Essas obras se aliam, não apenas pelo caráter imaginário e negador ou corretivo das sociedades existentes, mas também por certas afinidades outras, às criações de Swift, Butler, Wells, Huxley e Orwell. Basta comparar Admirável Mundo, de Huxley, e 1984, de George Orwell.
São textos que nos apresentam um sentimento de vazio e tormento que reina impiedosamente no convívio humano com suas instituições, corroendo e desesperando os grupos e seres da sociedade. O livro de Cândido ainda contém outros ensaios sobre obras que ele categorizou como fora do esquadro, criações que, pertencendo a dada situação histórico-literária, parecem romper com suas propostas em determinados momentos, é o caso de um poema de Mário de Andrade que, em meio à embriagada aventura do verso livre, recorre a um procedimento canônico do versejamento regular.
Meu primeiro e inevitável intento, ao concluir a leitura desses ensaios históricos, foi correr às livrarias e sebos à cata das obras citadas que ainda não se encontram cá, reconfortavelmente postas em minha estante. Da primeira parte, me chamou atenção L'Assommoir, que faz parte do grande projeto de Zola, narrando a trajetória dos Rougon-Macquart, uma série de 20 romances que falam da histoire naturelle et sociale d'une famille sous le Second Empire, obra de fôlego de um dos mais notáveis mestre do naturalismo europeu que descreve clinicamente o comportamento dos traços hereditários de uma família ao longo de cinco gerações. Dessa série, tenho somente Naná, Therese Raquin e Germinal. As livrarias e sebos de Maceió revelam uma marca quase imutável e profundamente aborrecedora a todo ávido leitor que, como eu, não dispensaria encontrar de imediato uma obra tão fantástica como L'Assommoir, essa marca, infelizmente, é escassez de variedade de clássicos europeus, e até brasileiros, desconhecidos da maior parte da população. Prova disso é não encontrar em sebo algum um livro de importância destacada em nossa literatura, A Menina Morta, de Cornélio Penna.
Por sorte e insistência, vislumbrei, apertado entre tomos das editoras Altaya/Record, O Deserto dos Tátaros, de Buzzati. Um respiro de alívio em meio à fuligem de decepção. Mantenho minha busca, contudo, à espera de deparar os outros dois romances da segunda parte do ensaio de Antônio Cândido.