Os versos de Alphonsus de Guimaraens que formam o poema “A Cabeça de Corvo”, pela atmosfera sombria, noturna, arrastada que a obra infunde, mesmo numa leitura rápida, para um leitor atento e familiarizado com composições que fazem aflorar sensações angustiantes e perturbadoras, facilmente sugerem um paralelo com uma das obras mais admiráveis da literatura ocidental: O Corvo, de Edgar Allan Poe, poeta, contista e ensaísta norte-americano de vida atribulada que não raramente fazia refletir em suas obras.
É esse paralelo, que salta-nos à vista, o objeto deste artigo. O Corvo tornou-se mundialmente conhecido e inscreveu seu autor, citando Oscar Mendes, no panteão dos poetas imortais. Tais foram a arte e o labor que envolveu a composição do poema que, segundo provas, levou Poe a consumir anos de reflexão cujo processo lógico, cuidadoso, apurado, ele não dispensou de comentar em seu também famoso escrito Filosofia da Composição em que explicita, passo a passo, as minúcias do seu trabalho produtivo.
Como um dado curioso, vale dizer que Poe repelia a idéia de inspiração mágica que certos autores, especialmente poetas, assumiam para atestar o meio pelo qual compunham. Diz ele:
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa.
(POE, Edgar Allan. Obras Completas, 1998)
Das inúmeras traduções em língua portuguesa de O Corvo, preferi a de Gondin da Fonseca, por estar metricamente mais próxima do original inglês, e, como não convém, neste desambicioso trabalho, uma abordagem demasiado aprofundada do poema de Poe, houve por bem apenas transcrever parte dele, suficiente para se perceber seu eco no poema de Alphonsus de Guimaraens.
O CORVO, Edgar Allan Poe
Certa vez, quando à meia-noite eu lia, fraco, extenuado,
um livro antigo e singular, sobre doutrinas do passado,
meio dormindo – cabeceando – ouvi uns sons, trêmulos, tais
como se leve, bem de leve, alguém batesse à minha porta.
“É um visitante”, murmurei, “que bate, leve, à minha porta.
Apenas isso e anda mais.”
Bem me recordo. Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes...
Morria a chama no fogão, pondo no chão sombra errantes.
Eu nos meus livros procurava – ansiando as horas matinais –
um meio (em vão) de amortecer fundas saudades de Lenora
- bela adorada, a quem, no céu os querubins chamam Lenora,
e aqui ninguém chamará mais.
E das cortinas cor de sangue, o arfar soturno e brando e vago
causou-me horror nunca sentido – horror fantástico e pressago.
Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)
a repetir: “É alguém que bate, alguém que bate à minha porta;
algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta;
é isso, é isso e nada mais.”
Fortalecido já por fim, brado perdendo a hesitação:
“Senhor! Senhora! quem sejais, se demorei, peço perdão!
Eu dormitava, fatigado, e tão baixinho me chamais,
bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha porta,
que não é fácil escutar.” Porém só vejo, abrindo a porta,
escuridão e nada mais.
Perquiro a treva longamente, estarrecido, amedrontado,
sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonhado.
Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante nem sinais.
Uma palavra apenas corta a noite plácida – “Lenora.”
Digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me Lenora.
Isso somente - e nada mais.
Para o meu quarto eu volto enfim – sentindo n’alma estranho ardor,
e novamente ouço bater, ouço bater com mais vigor,
“Vêm da janela”, presumi, “estes rumores anormais,
Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.
É o vento, o vento e nada mais!”
Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de fora,
um corvo grande, ave ancestral, dos tempos bíblicos – doutrora!
Sem cortesias, sem parar, batendo as asas triunfais,
ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto,
quedar sombrio e nada mais.
Eu estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno
tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno.
“Sem crista, embora” – ponderei – “embora ancião dos teus iguais
não és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho errante de Plutão!
Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?”
E o corvo disse: “Nunca mais.”
Fiquei surpreso – pois que nunca imaginei fosse possível
ouvir de um corvo tal resposta, embora incerta, incompreensível,
e creio bem, que em tempo algum, em noite alguma entre mortais
viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta,
e declarar (ao alto de um busto, erguido a cima de uma porta)
que se chamava “Nunca mais.”
(...)
A CABEÇA DE CORVO, Alphonsus de Guimaraens
Na mesa, quando em meio à noite lenta,
escrevo antes que o sono me adormeça,
tenho o negro tinteiro que a cabeça
de um corvo representa.
A contemplá-la mudamente fico
e numa dor atroz mais me concentro,
e entreabrindo-lhe o grande e fino bico,
meto-lhe a pena pela goela adentro.
E solitariamente, pouco a pouco,
do bojo tiro a pena rasa sem tinta...
E a minha mão, que treme toda, pinta
versos próprios de um louco.
E o aberto olhar vidrado da funesta
ave que representa o meu tinteiro,
vai-me seguindo a mão correr lesta,
toda a tremer pelo papel inteiro.
Dizem-me todos que atirar eu devo
trevas em fora este agoirento corvo,
pois dele sangra o desespero torvo
destes versos que escrevo.
Poe, ao compor, procedia à consideração de um efeito, tendo em vista sempre a originalidade. Não dispensava-a, pois era-lhe uma constante fonte de interesse evidente. Para tanto, julgava certo e necessário compor mantendo o “vastamente importante elemento artístico – a totalidade ou unidade de efeito”. Para ele, um poema longo, para não perder essa unidade, deveria ser uma sucessão de poemas curtos em relação matemática direta com seu mérito, ou seja, a extensão do poema deve estar na razão direta da sua intensidade.
Esse doseamento se percebe visivelmente em O Corvo, em que há uma gradação de efeito construída de modo a deixar em suspensão o leitor até atingir seu clímax. Na relação do eu-lírico, em A cabeça de Corvo, com a figura do corvo representada pelo tinteiro, com pequenas diferenças, por tratar-se de um poema curto, essa gradação se realiza com o mesmo efeito de suspensão.
Em ambos os poemas, é a atmosfera que domina. Em ambos, uma personagem acha-se sozinha, metida em seus pensamentos, à noite sombria, silenciosa, alta. Acha-se cansada, envolta em mistério, mas concentrada num ato intelectual e até mesmo fantasioso. Uma lê atentamente, a outra escreve, mas as duas sentem-se observadas, tomadas de vagos receios e pressentimentos.
A impressão de pesadelo e delírio que os poetas conseguem meter em suas obras é algo que se difunde ao longo delas. N’O Corvo, a sibilante /s/ se repete como marcação quase que de um resfolgo “mais, umbrais, tais, matinais etc” ao longo do poema, e alcança plenitude no funéreo estribilho “nunca mais”, que mais se assemelha ao um dobre de finados, sugerindo uma ambiência abafada, um ar pesado a imperar naquele espaço. Além de uma seleção lexical que reflete esse ambiente atroz e ameaçador em que se transformaram os locais de “visitação dos corvos” – lúgubre, sepulcrais, fantasmais, pressago, horror, estarrecido, torvo, funesta, louco etc.
Elemento de presença inequívoca na condução das ações dos poemas, o corvo, ave pressaga, majestática, com seu silêncio tiranizante, interrompido somente pelo dorido e ominoso ritornelo “nunca mais”, no de Poe, quer em silêncio, quer crocitando o terrível dobre, determina os atos da estarrecida personagem. De início, a sua aparição, lá fora, como que um viajante noturno a inspirar as mais medonhas conjecturas ao eu-lírico. Depois, já na sala, no diálogo ardente, perplexo e renitente, ansioso para o mistério solver daquele corvo tão espetacularmente torvo, que só lhe dirige o macabro refrão, o fulminado homem, vendo, na hedionda negação da ave, a resposta às suas ânsias pela amada Lenora, chega ao desenlace ao poema, aterrorizado, negando esse mesmo horror.
Semelhantemente, no poema de Alphonsus de Guimaraens, a ave precita, embora servindo de tinteiro, conduz a evolução do ato. Buscando escrever, em meio à noite, acercado de sono, tentando acoroçoar-se no entanto, o eu-poético desses versos se vê assediado por seu corvo, imerso na mesma atmosfera de medonhez que nos deu Poe. Trêmulo, se entrega ao ato criativo e, como que instintivamente, se vê compondo versos próprios de um louco.
A figura da ave inculca-lhe o pavor com seu olhar vidrado e percebe ele que escreve à lôbrega inspiração do aziago corvo, de tal modo que “dele sangra o desespero torvo desses versos que escrevo.”