05 abril 2008

Flânerie


Hoje pela manhã, acordei de um modo raro: confortável. Senti prazer nas formas do meu quarto, sempre em desalinho após a aurora, resultante, umas vezes, do embate de corpos da noite anterior; outras, do torvelinho de um sono agitado e desprazeroso. Mas o canto da patativa que se aninhou em meu telhado realmente ressumou n'alma algo de gozoso. O calor do Hades que não raramente acompanha as manhãs de outono neste cáustico nordeste hoje não me perturbou. Os sons da gente ímpia da ruas em seu imutável caminhar de alto a baixo sob minha varanda chegou a causar-me o habitual taedium uitae, mas suportei-o bem.
Assim, saí às ruas, tal flâneur dos trópicos, com a imagem do flâneur francês no espírito. E, num recitar de seus versos, ocorreram-me outros, de Cesário Verde. Um belo poema que descreve um movimento de passeio através das ruas, incorporando cada fato, ato, gesto, como se o poeta sobrevoasse a cidade e captasse sua agitação, seu bulício tal como se estivesse munido de uma câmera de lente de alta sensibilidade. Chama-se Ave-Marias.


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba,

Toldam-se duma cor monótona e londrina.


Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.


E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinir de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!


Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E alguns, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre
gera os focos de infecção!

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