Jean-Paul Sartre estabelece em Qu'est la littérature ? a necessidade premente, na vida, da literatura, pois viver exige contato vital com essa força miraculosa chamada arte literária. Para Sartre, não basta apenas escrever, é necessário, a partir da realidade histórica, fazer da obra uma outra realidade que estabeleça um contrato com o leitor a fim de tentar situá-lo no mundo. O filósofo francês concebia literatura como engajamento e disciplina a serviço do homem.
Para Antônio Cândido, obra literária é filha do mundo porque parte de dados documentais, mas como uma produção artística que se rege por regras próprias, constitui outro mundo que faz sentir melhor o primeiro, posto "estar reorganizado pela fatura" Esse é um dos sentidos de se fazer literatura, convocar fatos empíricos e dar-lhes vestes de ficção sem, no entanto, deixar de comunicar um profundo sentimento de vida, e reorganizando-os através de avanços e recuos, fazer sentir melhor a realidade da existência humana. Fazer senti-la melhor, não fazer vê-la como melhor, posto a literatura estar desobrigada do ônus e do desdouro de ser o sorriso da sociedade.
Esse princípio é aplicável a toda forma de arte, não apenas à literatura, como o cinema e o teatro, por exemplo. Ele exclui e condena a risível e suposta influência perniciosa que muitos apedeutas desinformados atribuem a certas categorias artísticas sob a mediação da religião. São recorrentes as atitudes de alienação desses truões que, valendo-se de seu influxo midiático, arrebatam multidões para seu circo de negação e injúria à arte. A incapacidade (ou má vontade) de discernir ficção de realidade objetiva e, nessa diferenciação, de perceber a relação estética na tessitura entre forma e conteúdo, é causa gritante de tantas aberrações que se proliferam nos meios cristãos quanto à relação do homem com certos tipos de arte. Isso se manifesta em termos tais quais:
Quanto aos filmes, é preciso ter o bom senso de assistir apenas aquilo que não traga dano à nossa comunhão com o Senhor. É comum nas telas, o errado tornar-se certo e o certo em errado, por exemplo, inúmeros filmes trazem personagens declaradamente maus, bandidos, assassinos, etc. que arrebatam a aprovação e até mesmo, o desejo de vê-los se dar bem. É o compactuar com as obras das trevas. É licita tal diversão? Jesus ocuparia o seu tempo assistindo filmes abertamente contrários aos princípios de Deus?
(extraído do sítio cristão Vivos!)
Indivíduos como o autor do excerto acima incorrem numa forma insultante de vaidade para qualquer cristão sensível à mais elevada das expressões humanas, a arte. Essa vaidade, parece-nos, lhes permite arrogarem para si o título de psicólogo de Cristo. Para eles, Jesus não tem mais onisciência, pois lhes deve a obrigação da consulta para fazer isso ou aquilo. Desconhecem esses teólogos de araque que a maldade retratada das ações humanas no cinema é apenas aspecto da práxis imediata da vida cotidiana captável por uma forma de conhecimento colocado em nível superior, a estética. Não basta somente entender uma obra pela sua mensagem ou pela sua forma. Convém, necessariamente, compreender que o fazer estético é parte do fazer social e histórico que deu origem à obra de arte, seja ela escrita, pintada numa tela, filmada ou esculpida.
A arte atrai a natureza por um certo meio, a mímese, que é, portanto, um princípio estético-ficcional pelo que não cabem, ao se falar de filmes, romances, pintura, desenhos, gravuras, música, teatro etc recriminações como a da citação acima, pois estas comportam apenas preconceito e falta de metodologia crítica.
Ademais, a literatura brasileira e mesmo a universal, como forma de arte, atraem mimeticamente formas naturais que, vistas pela ótica tacanha de que tudo que não “louva a Deus” é estupendamente demoníaco ou sem proveito para os santos, pareceriam chocantes e anti-bíblicos. Que dizer de Machado de Assis que meteu em suas obras um sabor humorístico fazendo jocosidades de certos valores humanos, ao conceber personagens como Marcela, prostituta interesseira; Capitu, uma esfinge de segredos pontificada como modelo de mocinha que vê no casamento um meio de subir na vida; Brás Cubas, indivíduo ocioso que abusa de sua condição aristocrática? Seria a maior figura de nossas letras indevida para um crente, por que incorpora temas “biblicamente condenados” como cartomancia, adultério, vaidade, assassinato, crueldade etc?
E quanto a Émile Zola, romancista francês, um dos expoentes máximos do naturalismo literário, que, como um anatomista, dissecou a corrompida alma humana quando entregue aos seus instintos? Seria a leitura de Madame Bovary, a história de uma adúltera, ilícita? Aluísio Azevedo que,
Em síntese, quando Paulo adverte os coríntios de que todas as coisas são lícitas, mas nem todas convém, ouso dizer que pensou com a racionalidade e o bom senso que sugiro adotar com o presente arrazoado, pois a arte nada deve à realidade.
Um comentário:
Oi, Pedro!
Há dias, tenho tentado uma resposta em agradecimento pela visita ao meu blog. Mais do que isso: tenho tentado um comentário que me parecesse válido e coerente com a satisfação da descoberta de que também possuis um blog. Então li essa postagem e, confesso, foi a que mais me atraiu à curiosidade de refletir e me sentir próximo ao que se reflete: "autonomia da arte" em 'divergência' (?) com os "valores cristãos", â moral exigida na Arte em séculos anteriores - esse assunto, creio eu, mais me familiarizo. Gostei da resenha. Gostei e estou a refletir... E quando minha reflexão me parecer válida, comentarei contigo por meio de meu blog (tudo bem?). Enquanto isso, reflito como consequência de uma causa (a leitura)...
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