29 maio 2008

Autonomia da Arte e Valores Cristãos


Jean-Paul Sartre estabelece em Qu'est la littérature ? a necessidade premente, na vida, da literatura, pois viver exige contato vital com essa força miraculosa chamada arte literária. Para Sartre, não basta apenas escrever, é necessário, a partir da realidade histórica, fazer da obra uma outra realidade que estabeleça um contrato com o leitor a fim de tentar situá-lo no mundo. O filósofo francês concebia literatura como engajamento e disciplina a serviço do homem.

Para Antônio Cândido, obra literária é filha do mundo porque parte de dados documentais, mas como uma produção artística que se rege por regras próprias, constitui outro mundo que faz sentir melhor o primeiro, posto "estar reorganizado pela fatura" Esse é um dos sentidos de se fazer literatura, convocar fatos empíricos e dar-lhes vestes de ficção sem, no entanto, deixar de comunicar um profundo sentimento de vida, e reorganizando-os através de avanços e recuos, fazer sentir melhor a realidade da existência humana. Fazer senti-la melhor, não fazer vê-la como melhor, posto a literatura estar desobrigada do ônus e do desdouro de ser o sorriso da sociedade.

Esse princípio é aplicável a toda forma de arte, não apenas à literatura, como o cinema e o teatro, por exemplo. Ele exclui e condena a risível e suposta influência perniciosa que muitos apedeutas desinformados atribuem a certas categorias artísticas sob a mediação da religião. São recorrentes as atitudes de alienação desses truões que, valendo-se de seu influxo midiático, arrebatam multidões para seu circo de negação e injúria à arte. A incapacidade (ou má vontade) de discernir ficção de realidade objetiva e, nessa diferenciação, de perceber a relação estética na tessitura entre forma e conteúdo, é causa gritante de tantas aberrações que se proliferam nos meios cristãos quanto à relação do homem com certos tipos de arte. Isso se manifesta em termos tais quais:

Quanto aos filmes, é preciso ter o bom senso de assistir apenas aquilo que não traga dano à nossa comunhão com o Senhor. É comum nas telas, o errado tornar-se certo e o certo em errado, por exemplo, inúmeros filmes trazem personagens declaradamente maus, bandidos, assassinos, etc. que arrebatam a aprovação e até mesmo, o desejo de vê-los se dar bem. É o compactuar com as obras das trevas. É licita tal diversão? Jesus ocuparia o seu tempo assistindo filmes abertamente contrários aos princípios de Deus?

(extraído do sítio cristão Vivos!)

Indivíduos como o autor do excerto acima incorrem numa forma insultante de vaidade para qualquer cristão sensível à mais elevada das expressões humanas, a arte. Essa vaidade, parece-nos, lhes permite arrogarem para si o título de psicólogo de Cristo. Para eles, Jesus não tem mais onisciência, pois lhes deve a obrigação da consulta para fazer isso ou aquilo. Desconhecem esses teólogos de araque que a maldade retratada das ações humanas no cinema é apenas aspecto da práxis imediata da vida cotidiana captável por uma forma de conhecimento colocado em nível superior, a estética. Não basta somente entender uma obra pela sua mensagem ou pela sua forma. Convém, necessariamente, compreender que o fazer estético é parte do fazer social e histórico que deu origem à obra de arte, seja ela escrita, pintada numa tela, filmada ou esculpida.

A arte atrai a natureza por um certo meio, a mímese, que é, portanto, um princípio estético-ficcional pelo que não cabem, ao se falar de filmes, romances, pintura, desenhos, gravuras, música, teatro etc recriminações como a da citação acima, pois estas comportam apenas preconceito e falta de metodologia crítica.

Ademais, a literatura brasileira e mesmo a universal, como forma de arte, atraem mimeticamente formas naturais que, vistas pela ótica tacanha de que tudo que não “louva a Deus” é estupendamente demoníaco ou sem proveito para os santos, pareceriam chocantes e anti-bíblicos. Que dizer de Machado de Assis que meteu em suas obras um sabor humorístico fazendo jocosidades de certos valores humanos, ao conceber personagens como Marcela, prostituta interesseira; Capitu, uma esfinge de segredos pontificada como modelo de mocinha que vê no casamento um meio de subir na vida; Brás Cubas, indivíduo ocioso que abusa de sua condição aristocrática? Seria a maior figura de nossas letras indevida para um crente, por que incorpora temas “biblicamente condenados” como cartomancia, adultério, vaidade, assassinato, crueldade etc?

E quanto a Émile Zola, romancista francês, um dos expoentes máximos do naturalismo literário, que, como um anatomista, dissecou a corrompida alma humana quando entregue aos seus instintos? Seria a leitura de Madame Bovary, a história de uma adúltera, ilícita? Aluísio Azevedo que, em O Cortiço, desvelou o atoleiro moral do ser humano apoderado pela cobiça, luxúria e competitividade capitalista, nosso ilustre romancista estaria no índex das proibições bíblicas por que desnuda a realidade por meio da arte?

Em síntese, quando Paulo adverte os coríntios de que todas as coisas são lícitas, mas nem todas convém, ouso dizer que pensou com a racionalidade e o bom senso que sugiro adotar com o presente arrazoado, pois a arte nada deve à realidade.

Um comentário:

Fellipe Ernesto disse...

Oi, Pedro!
Há dias, tenho tentado uma resposta em agradecimento pela visita ao meu blog. Mais do que isso: tenho tentado um comentário que me parecesse válido e coerente com a satisfação da descoberta de que também possuis um blog. Então li essa postagem e, confesso, foi a que mais me atraiu à curiosidade de refletir e me sentir próximo ao que se reflete: "autonomia da arte" em 'divergência' (?) com os "valores cristãos", â moral exigida na Arte em séculos anteriores - esse assunto, creio eu, mais me familiarizo. Gostei da resenha. Gostei e estou a refletir... E quando minha reflexão me parecer válida, comentarei contigo por meio de meu blog (tudo bem?). Enquanto isso, reflito como consequência de uma causa (a leitura)...