05 dezembro 2011

A Propósito de honra e dignidade, raras virtudes!

       Se o Corinthians tivesse 30 títulos de libertadores, 45 brasileiros e 15 mundiais, ainda seria maligna e invejosamente atacado pelos adversários que alegariam ser campeões, por exemplo, do 'torneio da liga gay' como meio de dizer acintosamente "eu tenho esse título, você não". 
       Reconhecer o mérito do concorrente e com ele alegrar-se é algo pesado demais a espíritos incultivados e medíocres. O recurso dos maus perdedores, faltando-lhes, como é comum, a boa educação, a decência e principalmente argumentos verazes, se reduz simplesmente a atacar o adversário sem qualquer capacidade de provar o mérito de suas acusações. É o jogo da baixeza, do grotesco, da falta de honra, da injúria gratuita pelo incômodo com o sucesso alheio tão comum nesse país de atávica falta de valores e que se reflete miseravelmente no esporte. 
      Quisera que todos esse torcedores fossem reunidos num local onde pudessem se matar uns aos outros para somente restarem aqueles que apreciam o futebol como uma prática lúdica e saudável e não como pretexto para o exercício da vileza moral!

30 novembro 2011

Aos Pés








            Refiz um texto saído dos folguedos de imaginação da adolescência, estava na carreira dos 19 talvez, quando me propus revelar o que faz alguns serem podoestetodólotras, termo que cunhei cujo sentido preciso sabereis lendo. Esta versão comecei dando-lhe ares de conto, mas se meteram entre as linhas veias cronistas e um vagar de devaneio e resultou no que aí vai. 






          A tarde se impunha trazendo seu arrebol cambiante. Eram belas aquelas faixas de fogo que se estendiam na indolência do céu que convidava à contemplação. Eu fitava o passar contínuo das pessoas na rua sentado na cafeteria da praça de ...  Uma voz, menos que isso, um murmúrio cantado me chamou. Voltei-me e lá estava entornando conhaque a figura de um homem que pensava jamais ver novamente. "Olhas as belezas que passam?", perguntou-me enquanto acariciava a barba agrisalhada que terminava em ponta.
            Era um amigo que não via há não sei quantos anos e estava ali como um velho alquebrado, enfurnado num jaquetão vinho, de compleição magra e olheiras violáceas. Segundo me indicou posteriormente, corriam seus 40 anos, mas o vê-lo assim permitia-me dar-lhe muito mais. Julguei-o doente, mas disse-me ter sido devastado pela paixão por uma albanesa que cá viera e o submetera aos seus caprichos.
            "Vi como teus olhos caíam aos pés de cada mulher que passava. Olhavas acima deles à distância, mas, de perto, parecia que se te desenhavam telas de Courbet ou Manet tal alumbramento possuíam!" Disse-me adivinhando-me o objeto de contemplação aquela tarde em que o bulício das ruas se baralhava ao rugir dos carros além, na rua do Comércio. "Foste em cheio no alvo! Observavas-me há tanto tempo aí em silêncio?", perguntei-lhe ao que respondeu "Não somente a ti, pois sei de teu enleio com essas partes do corpo feminino. Também me detinha a vê-las, mas atento a tuas reações. O vinho não te deixaria mais embriagado!" Meu pecado inconfesso, se é de certo assim chamá-lo, afigurava-se-me ali despindo-me um pouco de bem sentir-me naquele ambiente.  
         Nesse momento, levantou-se descruzando as pernas e os dedos encarquilhados que descansava sobre o ventre. Pegou do chapéu de feltro que jazia sobre a mesa e, depois de cobrir com ele a cabeça, comprimiu-me o ombro cortesmente dizendo, no mesmo tom de murmúrio inicial, "não cores, pois, como tu, sei que os pés são táteis como as mãos. Não foram somente negrumes de tristeza que rendeu a paixão treslouca da minha vida. Ela foi um vórtice sugadouro. Levou-me saúde e dinheiro, mas foi um demônio de gozo e deixou-me saudades fundas daquela perfeição grega e trigueira, como as de Fídias, que eu me senhoreava entre os lençois. Daquele corpo ressumavam as delícias de Elísios e dos festejos de Baco, naqueles pés desbotei meus lábios. O pecado e a graça coabitavam-no. Escravizado, sentia-me uma propriedade; convulsionado de gozo, sentia-me um rei"
            Já era noite quando cruzou a soleira da porta cambaleante como um velho. Voltando eu para casa, sob o ar frio, fiquei a rever aqueles momentos de memória. Seu tom, seu ar gasto apesar de suas roupas bem compostas me passavam e repassavam insistentemente, até que lembrei-me - os pés são táteis como as mãos - frase que, de todas, resumia o fascínio que eu ali demonstrava, não querendo, com os olhos amortecidos pela calma da tarde. Isso implica mais que aparenta, pois não se trata somente de prolongamentos corporais de sustentação. Talvez extremidades refinadas de tentáculos humanos, as pernas. Só o vê-las aflige de ansiedade por chegar aos pés. Em casa, aos vapores do charuto, entre goles de vinho alentejano peguei da pena para transvazar meu êxtase no papel e tentar entender a eroto-fisiologia dos pés femininos. Ivan Ângelo, em adorável crônica sobre esses camafeus de carne, disse que "alertam para o que é áspero e para o que é suave"!  São sensíveis. Colhem sensações e devem provocá-las também! Não são apenas linhas, curvas, unhas, pelos, vincos e dobras. Há um universo de imagens geradas por odores e sabores realçados por cosméticos, esmaltes, cremes, libido.
            Partes cheias de mimo e agrado, louçãs como as mãos, coleantes como serpentes. Castro Alves cantou-as com a incontinência típica de seus arroubos: "Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / ao doudo afago de meus lábios mornos." William Yeats, em versos melancólicos, pareceu confessar sujeição aos seus encantos: “Sob teus pés ponho os meus sonhos; pisa-os com cuidado, pois são meus sonhos que pisas!” Revela-nos essa entrega também devoção, não só o desejo que acutila a carne, a punção do estro que atiça o poldro como os versos de Neruda, que apresentam pés quase anódinos, quiçá de uma deidade: “Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo teus pés... mas se amo os teus pés é porque nadaram sobre o vento, sobre a terra e sobre a água até me encontrarem”.
            Sendo, pois, tão ternos ao ponto de religiosa devoção nos criar, convém aplicar-lhes a designação de Machado de Assis da menina-moça: “uma rosa entreaberta, um botão entrefechado”. Que infrutescência rebuçada de graça, donaire de profuso encanto, mas, embora lhes sobejem metáforas que os alocam no reino feérico do alumbro, o gesto do amante, na ritual adoração do beijo, descobre a pulsão do Eros.
            Assim, nos ponhamos, por instantes, no lugar de quem lhes sorve o bálsamo e imaginemos, mercê do tórrido relato do visitante vespertino, a fisiologia dessa conjunção de carnes, lábios esfaimados de gozo e pés banqueteantes de luxúria. O amante desliza a boca pelo dorso, cevando cada polegada de pele. Os dedos retesam-se e parecem clamar pelos lábios que se avizinham, ávidos, já senhores de seu objeto. A língua, então, serpeia por entre eles, ora insinuando ataque ora detendo-se; afogueada, roça de leve a prega entre os dedos e torvelinha-se em sugaduras nas pontas para submetê-los à sua total vontade.
            A essa altura, a bacante já se extasia e as sensações se irradiam para áreas mais incendidas. As saliências do corpo se edemificam e o torpor caminha para o ápice. As coxas, no seu ardente embate, como se resguardassem, desesperadas, o plúmbeo e fogacento báculo de explodir, se aproximam e se encarniçam num crispar de insânia e, entregando-se à volúpia que lhes convulsiona as carnes, se espasmam ao infinito.
             O amante, com a boca já entregue à sola, compensando o arroubo anterior com o festejo das cosquilhas, vê então os lábios de sua Vênus, de contraído esgar de gozo, passar à soltura do riso até retornar ele à frenética sucção nos dedos. Agora, não mais individualizada, mas em grupos. Dois em dois, três em três!
            Quiçá esteja nesse poder de comunicar sensações, de causar delíquios aos fieis acólitos de seus encantos, de avassalar amantes, a explicação para aquela conformação de “pathos” do meu amigo, tão amoldado estava ao cativeiro de uma saudade carnal que lhe transparecia nos olhos e no falar de murmúrio


23 novembro 2011

Olhos de Fome


A Baudelaire



"Nos obscuros desvãos das velhas capitais, 
Em que tudo, até o horror, tem ares encantados,
Eu observo, obediente a meus sestros fatais,
Seres de exceção, decrépitos e amados."

[Quadros Parisienses - Baudelaire]




A loja luzia pela vidraça. Parecia um palácio em festa e todas as sensações despertadas pelas luzes, cores, cheiros e sons criavam nas almas presentes o gozo da estreia. 
Era natal e o bulevar em frente recendia a café e licor de avelã baralhando-se ao odor penetrante das hortelãs metidas em cercas que flanqueiam a rua onde vistosas galhadas de olmos farfalham ao vento. 
Tudo ali mudara. Saíram os cortiços e os barracos de lona para dar lugar ao espetáculo do consumo. Que haja lojas e o capitalismo fez compradores por lei, ofício e doença.
As crianças, lá dentro, corriam pelos corredores com o coração em lavareda. Eram todas braços, pernas e ventres bem fornidos dentro de roupas de cores vivazes mas lúcidas. As mães fuzilavam de alegria ante aquela saúde de potro.
Do lado de fora, três pares de olhos. Apenas olhos afundados na angústia que a fome inclemente injetou. Olhos vestidos de trapos. Olhos que calçavam alparcas rotas de tiras de caixote observando as luzes que, umas, como fogos-fátuos, piscavam de lado a lado e, outras, relampejavam em júbilo. 
Olhos mudos e imotos como cadáveres, que só olhavam tentando comer o que as bocas desdentadas e lassas já não podiam. O cheiro das frutas, a cor dos bombons, o sabor da canela e do mel sobre roliças bananas diziam aos olhos, em formas chamativas e de vulto, o que somente os braços, pernas e ventres cevados de bácoro de feira podiam se senhorear ... enquanto aqueles olhos só olhavam pela vidraça da loja numa tarde de natal.









Tela: Luigi Loir - Uma Praça em Paris

14 julho 2011

O renomado linguista José Luiz Fiorin, do departamento de Linguística da FFLCH da Universidade de São Paulo, em entrevista, esclarece o propósito do livro do MEC "Por Uma Vida Melhor" irrefletidamente acusado de ensinar erros gramaticais pela imprensa desinformada e por quem, com ela, fez o ridículo coro de censura. Espero que alguns jornalistas, como os da revista Veja, já que não leram o livro do MEC inteiramente, tenham visto e vejam essa esclarecedora entrevista e aprendam a falar somente daquilo que sabem!


20 maio 2011

LINGUÍSTICA X IGNORÂNCIA DA IMPRENSA

Texto da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) que constitui sua posição frente à polêmica que marca a publicação do livro didático "Por uma vida melhor", da coleção "Viver, aprender", distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Lamentavelmente, a imprensa banal deste país, em prova de ignorância crassa, não se comediu em condenar o livro sob alegações das mais estapafúrdias que só evideciam extremo desconhecimento sobre uma ciência séria e necessária chamada Linguística.

É igualmente lamentável que a grita ridícula da imprensa repercuta nas vozes de leigos, pseudointelectuais e em toda a choldra ignóbil e irrefletida com o mesmo arrogante tom incriminador, mas que só revela falta de visão científica!

Além do texto da ABRALIN, forneço o enlace para as considerações do sociolinguista Marcos Bagno a respeito do tema em seu sítio.




Língua e Ignorância

Nas duas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma discussão a respeito do livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA - ABRALIN - vê a necessidade de vir a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos até o momento.

Curiosamente é de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para além disso, ainda, foram muito mal interpretados e mal lidos.

O fato que, inicialmente, chama a atenção foi que os críticos não tiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questão mais atentamente. As críticas se pautaram sempre nas cinco ou seis linhas largamente citadas. Vale notar que o livro acata orientações dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) em relação à concepção de língua/linguagem, orientações que já estão em andamento há mais de uma década. Além disso, não somente este, mas outros livros didáticos englobam a discussão da variação linguística com o intuito de ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. Portanto, em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir o pleno exercício da cidadania. Esta é a única razão que justifica a existência de uma disciplina que ensine língua portuguesa a falantes nativos de português.

A linguística se constituiu como ciência há mais de um século. Como qualquer outra ciência, não trabalha com a dicotomia certo/errado. Independentemente da inegável repercussão política que isso possa ter, esse é o posicionamento científico. Esse trabalho investigativo permitiu aos linguistas elaborar outras constatações que constituem hoje material essencial para a descrição e explicação de qualquer língua humana.

Uma dessas constatações é o fato de que as línguas mudam no tempo, independentemente do nível de letramento de seus falantes, do avanço econômico e tecnológico de seu povo, do poder mais ou menos repressivo das Instituições. As línguas mudam. Isso não significa que ficam melhores ou piores. Elas simplesmente mudam. Formas linguísticas podem perder ou ganhar prestígio, podem desaparecer, novas formas podem ser criadas. Isso sempre foi assim. Podemos ressaltar que muitos dos usos hoje tão cultuados pelos puristas originaram-se do modo de falar de uma forma alegadamente inferior do Latim: exemplificando, as formas "noscum" e "voscum", estigmatizadas por volta do século III, por fazerem parte do chamado "latim vulgar", originaram respectivamente as formas "conosco" e "convosco".

Outra constatação que merece destaque é o fato de que as línguas variam num mesmo tempo, ou seja, qualquer língua (qualquer uma!) apresenta variedades que são deflagradas por fatores já bastante estudados, como as diferenças geográficas, sociais, etárias, dentre muitas outras. Por manter um posicionamento científico, a linguística não faz juízos de valor acerca dessas variedades, simplesmente as descreve. No entanto, os linguistas, pela sua experiência como cidadãos, sabem e divulgam isso amplamente, já desde o final da década de sessenta do século passado, que essas variedades podem ter maior ou menor prestígio. O prestígio das formas linguísticas está sempre relacionado ao prestígio que têm seus falantes nos diferentes estratos sociais. Por esse motivo, sabe-se que o descon hecimento da norma de prestígio, ou norma culta, pode limitar a ascensão social. Essa constatação fundamenta o posicionamento da linguística sobre o ensino da língua materna.

Independentemente da questão didático-pedagógica, a linguística demonstra que não há nenhum caos linguístico (há sempre regras reguladoras desses usos), que nenhuma língua já foi ou pode ser "corrompida" ou "assassinada", que nenhuma língua fica ameaçada quando faz empréstimos, etc. Independentemente da variedade que usa, qualquer falante fala segundo regras gramaticais estritas (a ampliação da noção de gramática também foi uma conquista científica). Os falantes do português brasileiro podem fazer o plural de "o livro" de duas maneiras: uma formal: os livros; outra informal: os livro. Mas certamente nunca se ouviu ninguém dizer "o livros". Assim também, de modo bastante generali zado, não se pronuncia mais o "r" final de verbos no infinitivo, mas não se deixa de pronunciar (não de forma generalizada, pelo menos) o "r" final de substantivos. Qualquer falante, culto ou não, pode dizer (e diz) "vou comprá" para "comprar", mas apenas algumas variedades diriam 'dô' para 'dor'. Estas últimas são estigmatizadas socialmente, porque remetem a falantes de baixa extração social ou de pouca escolaridade. No entanto, a variação da supressão do final do infinitivo é bastante corriqueira e não marcada socialmente. Demonstra-se, assim, que falamos obedecendo a regras. A escola precisa estar atenta a esse fato, porque precisa ensinar que, apesar de falarmos "vou comprá" precisamos escrever "vou comprar". E a linguística ao descrever esses fenômenos ajuda a entender melhor o funcionamento das línguas o que deve repercutir no processo de ensino.

Por outro lado, entendemos que o ensino de língua materna não tem sido bem sucedido, mas isso não se deve às questões apontadas. Esse é um tópico que demandaria uma outra discussão muito mais profunda, que não cabe aqui.

Por fim, é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação ao ensino de língua e à variedade linguística.

Maria José Foltran

Presidente da Abralin

Secretaria Abralin/Gestão UFPR 2009-2011

05 fevereiro 2011

Advogado do Diabo

O presidente do STJ, Ari Pargendler, desacata um estagiário e o demite unicamente por irritar-se com sua presença no momento de uma transação financeira em um caixa eletrônico! Não bastassem a arrogância e a consciência de impunidade que marca o ser de muitos magistrados desse país, há quem tome sua defesa com alegações revoltantes que só revelam interesse elitista!

Um exemplo que dimensiona a estapafurdez das tentativas de argumentos que, aliás, sequer se baseiam nos autos:

O autor do artigo "Armadilha para a Justiça: há um caso Ari Pargendler?" ao condenar o modo de enunciação da denúncia pelo "Blog do Noblat" alega que, por ser gaúcho o presidente do STJ, a frase dita por ele e reproduzida pelo retrocitado blogue deveria ser "tu estás demitido" e não a forma veiculada "você está demitido". É de provocar riso ou a ignorância abjeta do articulista a respeito de um fato típico da linguística, que é ‘o uso de mais de uma variante por um mesmo falante’ ou, propriamente, a simples defesa interesseira de um magistrado que, como muitos, se julga intocável e onipotente!

01 janeiro 2011

FASES DA ESCRITA PORTUGUESA

Na formação da língua portuguesa, a representação de sons inexistentes em latim, tais como [v, z, ƒ, λ], entre outros, deu-se através da criação, ao longo de uma série de tentativas, de alguns diacríticos gráficos ou dígrafos (NH, NN, Ñ, LH, LL,CH), que, com a transformação das letras latinas ou simplesmente a desconsideração das letras (C=s, C=k; G=g, G=z), causou uma série de mudanças que podem ser divididas em três grandes momentos. São eles: o período arcaico ou fonético, a partir de 1214; o período moderno, etimológico ou pseudo-etimológico, a partir de 1489 e o período atual, a partir de 1904, caracterizado por reformas ortográficas.

O período arcaico da língua portuguesa é o momento em que a escrita começa a se configurar com suas características particulares através de experiências para a construção da escrita e é marcado pela produção do Testamento de Afonso II (primeiro documento datado e escrito em língua portuguesa). É também conhecido como fase fonética, não apenas pela transposição da fala, mas principalmente por encontrar soluções que se estabeleceriam no período moderno. Esse caráter experimental justifica as constantes flutuações na escrita e o uso de dispositivos para representar certos sistemas sonoros. Disso resulta que, por exemplo, um mesmo autor empregue diferentemente o sistema ortográfico medieval.

Mesmo com as adaptações e incorporações de várias letras, havia uma regularidade. Sobre essa uniformidade Netto cita:

"Se não houvesse de pronto uma letra disponível, ora lançava-se mão da origem própria da palavra que se queria escrever, com G, às vezes incorporando o som modificado da pré-palatal, ora de qualquer outro sinal especialmente inventado para esse fim, como o J. (p. 20)."

Com as contribuições do período anterior, a escrita do período moderno tomava as feições próprias da língua portuguesa. OTratado de Confissom (primeiro livro impresso em língua portuguesa) mostrava que a ortografia se assemelhava à fisionomia presente nos livros do século XVI, inclusive no que diz respeito aos problemas gramaticais, como (nh, lh, ch, ss e ç).

O Renascimento e sua retomada dos valores greco-romanos proporcionam uma latinização do português mediante empréstimos lingüísticos desordenados, tal como ocorre com o inglês hoje. Vasconcelos entende que “a introdução de vocábulos romanos eruditos e, sobretudo, helênicos, foi uma das causadoras das anomalias que deturparam a escrita portuguesa”. O resultado é a escrita etimológica ou pseudo-etimológica, uma vez que a inserção de fonemas e morfemas não seguia nenhum critério filológico na reconstituição das palavras, ao contrário, as adaptações ou reconstituições eram feitas por qualquer pessoa que detivesse o domínio da escrita e pudesse estabelecer alguma relação etimológica, mesmo que equivocadamente.

Se no período fonológico caminhávamos para “coerência da escrita”, no período pseudo-etimológico tivemos um retrocesso. Palatalizações, inserção de letras que não expressavam sons, apenas marcavam sua origem, e outros processos mais, são exemplos dessa passagem. Nesse momento, abundaram grupos consonantais como ct, ph, mn, ll, mm, além do uso desenfreado do h mesmo em palavras cuja etimologia não o justificava. Eis alguns casos:

ESCRITA FONOLÓGICA

ESCRITA ETIMOLÓGICA

oje

hoje

ome

homem

aver

haver

sono

Somno

santo

Sancto

farmacia

Pharmacia

avogado

Advogado

Coser /z/

Cozer /dz/

Passo /s/

Paço /ts/


Vale ressaltar que datam desse período as primeiras sistematizações ou normalizações da escrita. A Grammatica da lingoagem portuguesa, escrita em 1536 por Fernão de Oliveira;Grammatica da língua portuguesa, em 1540, por João de Barros;Orthographia da lingoa portuguesa, em 1974, por Pedro de Magalhães são exemplos de esforços para imprimir limites a escrita caótica desse período. Não se deve esquecer, todavia, de mencionar nomes como Fernão Lopes, considerado o pai da prosa portuguesa; Garcia Resende; Zurara, tido como o primeiro representante da literatura apologética e imperial; e tantos outros escritores que certamente serviram de modelo para as tentativas de normalização da escrita.

É com a proposta de uniformização da ortografia portuguesa que, em 1904, Gonçalves Viana escreve o livro Ortografia Nacional, lançando as bases da ortografia ou período atual. Em seguida, temos a publicação de Vocabulário Ortográfico em 1940, organizado por Rabelo Gonçalves. Por fim, a Academia Brasileira de Letras estabelece em 1943 as Instruções para a organização ortográfica da língua portuguesa, baseada no livro de Viana, com ligeiras modificações. Após essas mudanças algumas reformas ocorreram sem provocar grandes modificações na língua.

Como foi visto, a primitiva simplicidade do português, vista numa indumentária meramente fonética que refletia a índole própria da língua, foi substituída pela moda, em vigor no Renascimento que exigia o conhecimento dos clássicos, de recorrer à origem da palavra para grafá-la em conformidade com ela, isso feito, em muitos casos, inteiramente à inspiração apressada e fantasiosa do escritor, conduta que gerava não uma, mas várias ortografias.

Desse estado de confusão em que se achava a língua de Camões, veio tirá-la Gonçalves Viana, com seu louvável, mas infelizmente não tão reconhecido trabalho Ortografia Nacional, que tem servido de base para reformas simplificadoras.

O objetivo da escrita do período fonético era facilitar a leitura, permitindo ao leitor a impressão, tanto quanto possível exata, da língua falada que seguia, nesse momento, seu fonetismo telúrico. Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras, isso provocava grafarem-se os vocábulos em conformidade com as diferenças regionais de pronúncia, a influência, embora um tanto escassa, do latim, a negligência dos copistas, etc. Escrevia-se visando não à apreensão exatamente do texto pela vista, mas pelos ouvidos. Alguns exemplos, dentre tantos outros, da escrita fonética:

  • O i era representado também por y e j: y = hi, mjnas = minhas;
  • Quando semivogal, substituía-o freqüentemente o h: cabha = cabia, dormho = dormio;
  • Ocorrência de vogais dobradas resultantes da queda da consoante medial: seer = sedere, coor = color, maa = mala. Mais tarde, esse recurso é utilizado para indicação da tônica: ataa = ata, taaes = tais, ceeo = céu;
  • O b às vezes alternava com v: aber = haver. Isso se dava, possivelmente, ou por influência latina ou espanhola;
  • Para preservar o som de duas nasais em contato m e n, intercalava-se um p – dampno (dano), solempnemente (solenemente);
  • Uso de letras geminadas por razões etimológicas, arbitrárias ou por uma realidade de pronúncia:

1. Cree – do latim credet por queda de consoante.

2. Lioões – p/ marcar a tonicidade

3. Pallavra – arbitrária

  • Confusão entre qu e c e gu e g: cinquo e cinco; amigua e amiga;
  • Confusão entre i, y e j e entre u e v: muyto/mujto/muito, lyuro/livro;
  • Confusão entre m, n e ~: cimco/cinco/cĩco;
  • Os sons palatais /ļ/ e /ŋ/ representavam-se por li, l, ll e ni, n, nn respectivamente – falia/fala/falla (falha), vinio/vino/vinno (vinho);

A partir do século XVI, como já dito, a influência do latim, tênue e escassa no período fonético, recrudesce, resultando numa infinidade de restaurações e incorporações vocabulares que visavam a estilizar a língua e aproximá-la, tanto quanto possível, da matriz do Lácio. Surgem, nessa época, os primeiros tratados de ortografia, como os de Pero Magalhães Gândavo e Duarte Nunes. Alguns autores, movidos pelo bom siso, se lançaram contra a debandada etimológica, mas tão frenética era a moda latinizante que não apenas vocábulos novos entraram no idioma, mas também formas antigas de lídimo caráter português sofreram o travestimento etimológico. Formas como dino, benino e malino foram metamorfoseadas em digno, benigno e maligno porque assim eram grafadas no latim. Observáveis também, numerosos ch, ph, rh, th e y começam a aparecer intercalados em palavras portuguesas de origem ou de suposta origem grega. E abundaram os grupos ct, gm, gn, mn, mpt em vocábulos de origem latina.

Querendo por fim às complicações da escrita que redundaram durante séculos e para apaziguar o caos que se instalou devido ao desenfreado arbítrio e fantasia dos escritores e ortógrafos, o governo português nomeou, em 1911, uma comissão de filólogos, dentre os quais o ilustre Gonçalves Viana, dando início ao período das reformas ortográficas. A primeira das quais foi implantada oficialmente cinco anos depois, em 1916, sofrendo uma ligeira modificação em 1927. Acabava, assim, a tirania feroz exercida pelo pseudo-ortografismo greco-latinizante sobre o português que recuperava suas formas medievais em alguns casos.

Seguiram-se a essas outras tantas, tanto em Portugal como no Brasil, sempre objetivando a simplificação, mas marcadas por falhas e lacunas de que derivaram alguns recuos na sua aplicação. Em 2008, após longas discussões e engavetamentos, fixou-se uma reforma ortográfica, acordada entre os países lusófonos, cuja implantação deu-se em 1º de janeiro de 2009, confirmando sua já histórica índole simplificadora, apesar dos protestos de alguns abalizados escritores e estudiosos. Para um ideia do que pensam estes, vejam-se os textos de Roberto Sarmento Lima e Cláudio Moreno: Uma Pedra no Meio do Caminho/A Arrogância do Acordo Ortográfico e Deixem Nossa Ortografia em Paz, respectivamente.