22 outubro 2009

A Virtude dos Palavrões

Ariel Arango, psicanalista argentino, cita uma carta do filósofo Voltaire a sua sobrinha, escrita em italiano:

“Beijo-te mil vezes. Minha alma beija a tua, minha pica, meu coração estão apaixonados por ti. Beijo teu belo cu e toda tua pessoa” (ARANGO, 1991, p.11).

Um primeiro contato com esse texto certamente espanta, sobretudo se considerarmos a tradição epistolográfica das grandes literaturas européias caracterizadas pela elevação de estilo. Balzac, Flaubert e o próprio Voltaire, franceses, se incluem nessa tradição. Entretanto, o estilo epistolar do filósofo, na confissão de sua paixão amorosa, não refuga termos que a moda geral nesse campo condena. É de conceito vigente que o erotismo pode insinuar-se numa forma epistolar desde que amenizado por palavras aceitáveis ou toleradas. O que pensar, contudo, quando os sentimentos de um filósofo são externados com uma espontaneidade tão crua e aberta, no emprego das palavras pica e cu (cazzo e culo, no original, respectivamente)? A reação comum seria a surpresa e a insatisfação. Haveria um vago mal-estar diante dessa forma de exprimir o amor e, sobretudo, o amor entre um homem maduro e sua sobrinha!

Mas façamos como o psicanalista argentino, em seu interessante livro sobre as virtudes terapêuticas dos palavrões e substituamos os termos havidos como impudicos por outros de mais aceitação:

“Beijo-te mil vezes. Minha alma beija a tua, meu pênis, meu coração estão apaixonados por ti. Beijo tuas belas nádegas e toda tua pessoa.”

Duas palavras apenas foram trocadas dentro de um total de 25. A essência da mensagem se preservou, mas perdeu vivacidade. A atmosfera erótica se diluiu, a intensidade se esvaeceu. A volúpia inicial, parece-nos, se refugiou no casto temor que procura não ofender, não chocar. A mensagem já não nos alcança com o mesmo viço e sentimento.

Isso posto, cabe-nos refletir: pica e cu, pênis e nádegas são itens lexicais que se referem aos mesmo objetos de nossa anatomia, mas por que o primeiro par é tabuizado e o segundo não? O que há na estrutura de tais palavras que desabona o uso de umas, mas não de outras? Estaria na sua origem, na sua diacronia? Certamente não convém determinar o uso ou não-uso de palavras com base em tais critérios. A língua, como um sistema dinâmico e estruturante, refaz seus caminhos segundo as necessidades e alguns significados primitivos se esfumam no tempo, mudam ou se recuperam em contextos diversos.

São problemas como esses que evocam um conceito fundamental em estudos lingüísticos que focalizam o significado na prática social: a cultura. Esse conceito que fundamenta uma abordagem interpretativa do significado, criticamente suplementada pelas bases da lingüística antropológica, é tanto mais válido quanto mais considerarmos que o homem é um ser totalmente enculturado, pois:

(...) a cultura se faz visível em todos os aspectos da existência, até mesmo nas rotinas mais comezinhas e mínimas da higiene corporal. De fato, ela pode estar nas pequenas rotinas nas quais nós realizamos compreensões corporais de espaço e tempo em que a maioria das sutis operações da cultura possa se manifestar. (FOLEY, 1997, p. 15)

O conceito de significado culturalmente determinado não está restrito às práticas lingüísticas. Por curiosidade, convém citar que Geertz (1973) atenta a uma diferença de muito interesse entre a contração nervosa no simples ato de piscar e o gesto conspiratório que aí se pode conter quando acompanhado de uma expressão secundária. Destarte, uma piscadela de olhos é somente isso e nada mais, porém produzindo-a em conjunto com gestos acessórios pode ser altamente significativa numa conversa em que se está a falar uma coisa e a tencionar outra. Assim, nessa última situação, uma piscadela é um ato culturalmente determinado.

Essas considerações levaram-nos inevitavelmente à conclusão de que os palavrões inserem-se na categoria de estigmatizados pela ação das práticas culturais que condicionam nossa visão de mundo, mas que podem ser vitalizados como recursos de grande fecundidade pela compreensão heuristicamente sólida de suas possibilidades expressivas vistas pelo prisma de uma metodologia capaz de perscrutar os caminhos dos fenômenos lingüísticos no ambiente da cultura de que eles fazem parte.

Um comentário:

Gláucia Machado disse...

Pedro
uma piscadela ;)
e um beijo
ao som do sim:
que bom poder
trocar ideias!