24 abril 2008

Minha Pátria é minha Língua


Tenho acompanhado os tópicos de uma comunidade sobre o português falado no nordeste, e me sinto na obrigação de reagir contra a orgia odiosa de insultos e asneirices vomitada por uma criatura que, como certo se vê, nada entende de lingüística e de história, ao se dar à audácia de valorar uma variante lingüística em detrimento de outra e uma região geográfica em desprezo de outra.

Mesmo havendo, no curso da história, uma crescente afirmação do combate às variadas formas de preconceito, a mostrar que elas nada têm de verdade, nada de fundamentado cientificamente, mas são meros frutos bichados da ignorância crassa, da intolerância estúpida ou da manipulação ideológica, deparamos a fatalidade de encontrar pessoas como a autora dos comentários preconceituosos contra o nordeste que, parece-nos, não se cabe na sua total falta de respeito humano, na sua desmedida obtusão intelectual e se sente na necessidade de vomitar suas imundícias pelo simples prazer do agravo.

Pessoas assim são, infelizmente, uma incontornável desgraça na vida dos que aprendem, evoluem e se agigantam por cultivar o respeito e o bom senso e vêem esses hereges preconceituosos ficar cada vez mais para trás, cada vez mais rígidos e encarquilhados naquela forma de preconceito que é, de todas, as mais lamentável: a de livre escolha por uma inteiriça falta de orientação na vida.

Só no plano lingüístico, a opinião chacoteira da garota choca por revelar o quanto ela está atordoada pelas travancas da ignorância. Dizer que um sotaque é feio é, no mínimo, uma confissão vergonhosa de desinformação. É uma atitude que revela absoluta falta de conhecimento dos sutis mecanismos de uma língua que é um sistema com tendência à variação, ocorrendo em todos os níveis. Segundo Edward Sapir, “é justamente porque a língua é um tipo de comportamento, assim como tudo numa cultura, e também porque ela revela, em suas linhas gerais, regularidades que só o cientista tem o hábito de formular, que a lingüística é de estratégica importância para a ciência social. Por trás de uma aparente ausência de regras do fenômeno social, existe uma regularidade na sua configuração que é tão real quanto aquela dos processos físicos do mundo...”

Só para dar um exemplo de variação fonética, nível lingüístico em que os nordestinos estão sendo tripudiados, posso citar uma variável presente no inglês americano: o ditongo de termos como “bride” e “alive”, por exemplo, não é pronunciado de acordo com a norma padrão nos estados do sul, sobretudo no Mississipi e Alabama. A pronúncia mais comum, nesses estados, é um /a/ alongado, representado /a:/, segundo Woods (2001). Dizer a um norte-americano do sul que seu sotaque é feio ou errado é chocá-lo pela ausência de um saber elementar de que as línguas variam.

E, para exemplificação mais nossa, pode-se citar o que ocorre nas regiões banhadas pelo Tietê, onde há troca do “l” pelo “r”, fenômeno conhecido como rotacismo, assim: arto por alto, iguar por igual etc, por influência da língua dos indígenas, que não conheciam o fonema “l”, mas apenas o som de “r” e diziam “surará” como corruptela de “soldado”. Há, enfim, uma constelação de fatos que, por seu valor empírico, á h`H,lll sssssss

tem bastante poder impugnatório para fuzilar a arrogância descabida de uma molecota ainda de cueiros que desconhece o próprio país. Ela nada mais é que isso: uma criança em atraso mental masturbando suas pretensões a adulto. Suas ofensas contra o nordeste são apenas o produto de um onanismo cerebral inútil, de uma petulância banal e elitista violentamente incomodada.

10 abril 2008

Confraria Ufalina


Meus confrades da faculdade num dia de regozijo.

05 abril 2008

Flânerie


Hoje pela manhã, acordei de um modo raro: confortável. Senti prazer nas formas do meu quarto, sempre em desalinho após a aurora, resultante, umas vezes, do embate de corpos da noite anterior; outras, do torvelinho de um sono agitado e desprazeroso. Mas o canto da patativa que se aninhou em meu telhado realmente ressumou n'alma algo de gozoso. O calor do Hades que não raramente acompanha as manhãs de outono neste cáustico nordeste hoje não me perturbou. Os sons da gente ímpia da ruas em seu imutável caminhar de alto a baixo sob minha varanda chegou a causar-me o habitual taedium uitae, mas suportei-o bem.
Assim, saí às ruas, tal flâneur dos trópicos, com a imagem do flâneur francês no espírito. E, num recitar de seus versos, ocorreram-me outros, de Cesário Verde. Um belo poema que descreve um movimento de passeio através das ruas, incorporando cada fato, ato, gesto, como se o poeta sobrevoasse a cidade e captasse sua agitação, seu bulício tal como se estivesse munido de uma câmera de lente de alta sensibilidade. Chama-se Ave-Marias.


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba,

Toldam-se duma cor monótona e londrina.


Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.


E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinir de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!


Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E alguns, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre
gera os focos de infecção!